quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

A imposição moral e ética- Yves de La Taille


 

Yves de La Taille, psicólogo especializado em desenvolvimento moral, fala sobre como, apesar da crise por que passam, sobretudo na família e na escola, a moral e a ética continuam a ser pontos fundamentais na educação e desenvolvimento das crianças.

Educar. Palavra de apenas seis letras que traz consigo um amplo leque de responsabilidades que deixa qualquer pai ou educador que se proponha à árdua tarefa de ensinar uma criança a trilhar os caminhos do mundo inseguro. A violência, a falta de respeito e o individualismo — algumas das marcas registradas dos dias atuais — levantam questões sobre como andam e como transmitir dois conceitos fundamentais da boa educação e do convívio social: a moral e a ética.

Para Yves de La Taille, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, a situação do mundo hoje é paradoxal. "De um lado, verificamos um avanço da democracia e do respeito aos direitos humanos. Mas, de outro, tem-se a impressão de que as relações interpessoais estão mais violentas, instrumentais, pautadas num individualismo primário, num hedonismo também primário, numa busca desesperada de emoções fortes, mesmo que provenham da desgraça alheia", afirma.

La Taille nasceu na França, mas, desde criança, vive no Brasil. É professor de Psicologia do Desenvolvimento Moral na USP. É co-autor dos livros Piaget, Vygotsky, Wallon: Teorias Psicogenéticas em Discussão, Indisciplina na Escola (Summus Editorial) e Cinco Estudos de Educação Moral (Casa do Psicólogo) e autor, entre outros, de Limites: Três Dimensões Educacionais (editora Ática). Investiga o desenvolvimento moral desde a década de 80 e é um dos especialistas mais respeitados do país nessa área.

Segundo ele, a crise moral e ética atinge tanto a escola quanto as famílias, e uma empurra a responsabilidade da educação das crianças para a outra. "Muitos professores acusam os pais de não darem, por exemplo, limites a seus filhos, e muitos pais acusam a escola de não ter autoridade e de não impor a disciplina", diz. Mas completa que tanto uma quanto a outra têm grande responsabilidade no desenvolvimento moral e ético das crianças.

Leia a seguir a entrevista com o professor.

A definição de moral e ética é muito discutida atualmente. Como você define cada uma delas?
Entre as alternativas de definição e diferenciação entre os dois conceitos, eu tenho empregado estas: moral é o conjunto de deveres derivados da necessidade de respeitar as pessoas, nos seus direitos e na sua dignidade. Logo, a moral pertence à dimensão da obrigatoriedade, da restrição de liberdade, e a pergunta que a resume é: "Como devo agir?". Ética é a reflexão sobre a felicidade e sua busca, a procura de viver uma vida significativa, uma "boa vida". Assim definida, a pergunta que a resume é: "Que vida quero viver?". É importante atentar para o fato de essa pergunta implicar outra: "Quem eu quero ser?". Do ponto de vista psicológico, moral e ética, assim definidas, são complementares.

Alguns estudiosos definem como uma característica da pós-modernidade a crise nos valores morais e éticos por que passam as civilizações, principalmente as ocidentais. Outros falam até em ausência total da moral nas relações entre as pessoas nos dias de hoje. A que você credita essa crise? É possível vivermos sem moral e ética?
A situação parece-me de certa forma paradoxal. De um lado, pelo menos no mundo ocidental, verificamos um avanço da democracia e do respeito aos direitos humanos. Logo, desse ponto de vista, saudosismo é perigoso. Mas, de outro lado, tem-se a impressão de que as relações interpessoais estão mais violentas, instrumentais, pautadas num individualismo primário, num hedonismo também primário, numa busca desesperada de emoções fortes, mesmo que provenham da desgraça alheia. Assim, penso que, neste clima pós-moderno, há avanços e crise. É como se as dimensões política e jurídica estivessem cada vez melhores, e a dimensão interpessoal, cada vez pior. Agora, como não podemos viver sem respostas morais e éticas, urge nos debruçarmos sobre esses temas. De modo geral, penso que as pessoas estão em crise ética (que vida vale a pena viver?), e essa crise tem reflexos nos comportamentos morais. A imoralidade não deixa de ser tradução de falta de projetos, de desespero existencial ou de mediocridade dos sentidos dados à vida.

Então, essa crise das questões morais e éticas tem relação direta com a violência, o desrespeito, o individualismo, etc. vividos atualmente?
Veja: se o projeto de vida de alguém for, como é freqüente hoje em dia, ter muito dinheiro e glória, esse alguém tende a ver as outras pessoas como adversários (o dinheiro não dá para todos) ou como súditos de seu sucesso. Nos dois casos, são instrumentos de seu projeto. Manipula-os quando necessário, elimina-os quando não pode manipulá-los. Eis a violência instalada. Muitos valores presentes na sociedade contemporânea levam a relações fratricidas, e a violência no interior da própria comunidade passa a ser vista como modo inevitável de convívio e qualidade dos "fortes".

É interessante observar como muitos anúncios de propaganda, na televisão e no rádio, apresentam relações sociais competitivas, rudes e violentas, e isso para vender serviços telefônicos, carros, vídeos, etc., ou seja, objetos ou serviços nada bélicos.

De que maneira essa crise afeta as relações na escola e na família?
Ela afeta todas as relações e, por conseguinte, aquelas que unem a família e a escola. Nesse caso, o que se verifica é a constante delegação de responsabilidade a outrem — da família para a escola e vive-versa — e também a constante acusação mútua de incompetência ou desleixo. Muitos professores acusam os pais de não darem, por exemplo, limites a seus filhos, e muitos pais acusam a escola de não ter autoridade e de não impor a disciplina.

E a quem cabe a parte mais importante da formação moral e ética das crianças, à escola ou à família?
Não penso ser possível estabelecer hierarquia. Ambas as instituições são fundamentais para a educação moral e a formação ética. Logo, devem trabalhar em cooperação, completando-se mutuamente.

Em seu livro Limites: Três Dimensões Educacionais, você sugere a retomada da discussão do "contrato social" entre os indivíduos nos projetos educacionais como forma de melhorar as relações da comunidade. Qual é a melhor maneira de fazê-lo na realidade da escola brasileira?
Sabe-se que a melhor, para não dizer a única, forma de ter sucesso na educação moral, na formação ética e na pacificação das relações é, no seio da escola, trabalhar a qualidade do convívio social entre seus membros (professores, alunos, funcionários e pais). Logo, em vez de limitar-se a impor inúmeras regras, é melhor a escola deixar claro, para todos, os princípios que inspiram a convivência social. A elaboração de regras — que pode ser feita pela comunidade como um todo — será derivada da apreciação desses princípios. Eis o que se pode chamar de discussão do "contrato social".

No mesmo livro, você afirma que existe uma contradição, na qual se verifica, ao mesmo tempo, a falta de limites em muitas pessoas (e não apenas nos jovens, como reza o senso comum) e que o excesso desses limites também sufoca a maioria delas. Qual é a medida certa para transpor alguns limites e amadurecer e como impor limites que permitam a vida em sociedade?
A questão pode ser retomada por meio dos conceitos de moral e ética. A moral trata de limites no sentido restritivo (deveres). A ética, por remeter a projetos de vida, trata dos limites no sentido da superação, do crescimento, da busca de excelência. Ora, se há excesso de limites, em breve, se a sociedade, em vez de estimular o crescimento, valorizar a busca de uma vida que não vá além do mero consumo e que se contente com o aqui-agora, com a mediocridade, ela vai prejudicar a perspectiva ética e, conseqüentemente, a perspectiva moral. Uma pessoa somente agirá moralmente se vir, nesse tipo de ação, a tradução de uma vida que vale a pena ser vivida. Como a moral impõe restrições à liberdade, uma pessoa somente vai aceitar tais restrições se fizerem sentido num projeto de vida coletivo e elevado.

Numa palestra, você afirmou que, em sua maioria, os pais de hoje foram os filhos, nas décadas de 60 e 70, que lutaram com todas as forças contra a repressão, por isso, às vezes não impõem os limites corretos aos filhos por terem medo de parecer "autoritários". Como fazer para dosar a disciplina em casa e transmitir os valores éticos corretamente sem parecer antiquado?
O medo de ser autoritário é um sentimento importante. Mas o que é autoritarismo? É impor regras injustas, arbitrárias. É impor regras — mesmo que boas — negando à pessoa que deve obedecê-las a possibilidade de compreender sua origem e sentido. Exercer autoridade é outra coisa. Para tanto, as regras colocadas devem ser justas e devem também ser explicadas. Um bom exemplo de relação com autoridade é a relação que temos com um médico: seguimos suas prescrições porque o consideramos como representante de um conhecimento legítimo, inteligível (por mais difícil que seja) e que pode nos fazer algum bem. A relação de autoridade, seja na família, seja na sala de aula, deve seguir essa mesma lógica: os pais ou os professores devem ser reconhecidos como pessoas que detêm conhecimentos legítimos e necessários ao pleno desenvolvimento das novas gerações. Assim sendo, é claro que a moral (o respeito pelo outro) e projetos éticos de crescimento pessoal e social correspondem a valores preciosos para a vida. A criança começará a pensar neles referenciada em figuras de autoridade e, quando conquistar a autonomia, vai se libertar da referência à autoridade certamente com gratidão.

Você acredita que a violência a que estão expostos os jovens — através da TV, videogames, etc. — pode por si só influenciar e tornar as crianças violentas ou isso pode variar de acordo com os valores morais implícitos?
É uma questão difícil de ser respondida e sobre a qual não temos dados confiáveis. A meu ver, não é tanto a exposição a cenas de violência que pode causar comportamentos violentos, mas sim o sentido dado a elas. Se filmes mostram a violência como recurso último, cujo uso segue certas balizas morais e cujo objetivo é, ele mesmo, moral (lutar pela justiça), é uma coisa. Agora, se glorificam a violência em si, se a colocam a serviço do próprio prazer, se a colocam como primeira opção de resolver conflitos, é outra coisa. No primeiro caso, a violência é apresentada com crítica, no segundo, não. Isso pode exercer uma influência sobre o sistema de valores de jovens. Mas é preciso lembrar que há tantas variáveis e influências em jogo que não se pode eleger os meios de comunicação e entretenimento como grandes vilões.

Título: Limites: três dimensões educacionais
Autor: Yves de La Taille
Editora: Ática

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Separação- Rosely Saião


A família mudou bastante e as férias escolares são uma excelente oportunidade para obter alguns retratos dessas mudanças. Podemos observar, por exemplo, mães separadas acompanhadas de seus filhos em regiões litorâneas, hotéis fazenda e outros locais propícios ao lazer de crianças mas também ver pais descasados na mesma situação, se bem que em número bem menor.

Isso é um grande avanço para uma sociedade que levou bastante tempo para reconhecer as mudanças dos papéis de mãe e de pai no mundo atual. Entretanto, mesmo com esse avanço, crianças ainda penam depois que seus pais se separam porque nem sempre conseguem conviver com ambos num clima harmonioso e equilibrado.

Vamos convir: é preciso maturidade para se casar, ter filhos e, principalmente, se separar. E muitos casais carecem dessa maturidade quando decidem dissolver a relação que gerou filhos. O problema é que são as crianças as que mais sofrem quando isso ocorre e nem sempre os adultos envolvidos se dão conta do fato.

No fim do ano passado, acompanhamos pela imprensa a triste história do garoto Sean Goldman. Filho de pais separados, ficou no meio de uma disputa jurídica travada pela família materna e o pai por um longo período. Com as dificuldades adicionais de ser filho de pais de nacionalidades diferentes e de ter perdido a mãe, foi privado do convívio familiar pleno e tranquilo pela falta de diálogo entre as partes.

Durante o período em que a disputa legal esteve em curso, muita gente tomou partido: houve quem defendesse a estada do garoto com a família materna e quem alegasse que ficar com o pai seria a melhor saída. Para mim, nenhuma das soluções mostrava-se satisfatória para o garoto depois de tudo o que aconteceu em sua vida. Na verdade, foi criado um dilema na vida de Sean e, nesses casos, qualquer das soluções que se escolhe resulta insatisfatória.

Os relatos desse drama nos permitiram notar preconceitos que insistem em permanecer em nossos pensamentos. Um deles me chamou a atenção: o pai do garoto foi insistentemente chamado de "pai biológico". Pelo jeito, ainda temos muito que superar em busca de um final menos doloroso e mais sensato para as crianças que passam pelo divórcio dos pais. Precisamos entender que não há um lado certo e um lado errado, ou um lado melhor e outro pior para as crianças em casos de separação. Em raríssimos casos, a mãe ou o pai não demonstram condições de conviver com o filho e educá-lo. Fora essas situações, mãe e pai têm o dever de garantir aos filhos a convivência com ambos, o respeito pela figura de ambos e a chance de a criança se relacionar com dois estilos diferentes de amar e de educar.

Como na atualidade a possibilidade da separação de um casal já está posta desde o ato do casamento, talvez tenhamos de garantir nesse contrato formal a situação dos filhos no caso da dissolução do casamento. Afinal, eles são frutos de um encontro entre duas pessoas e não podem pagar a conta do desencontro quando ele acontece.

Fonte: Rosely Saião- UOL.com.br

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

“Quando o céu casa com a Terra”- Leonardo Boff


 

 Observando o processo de mundialização, entendido como nova etapa da humanidade e da Terra, no qual culturas, tradições e povos os mais diversos se encontram pela primeira vez, tomamos consciência de que podemos ser humanos de muitas maneiras diferentes e que se pode encontrar a Última Realidade, a mais íntima e profunda, seguindo muitos caminhos. Pensar que há uma única janela pela qual se pode vislumbrar a paisagem divina é a ilusão dos cristãos do Ocidente. É também o seu erro. Hoje o atual Papa vive repetindo a sentença medieval, superada pelo Vaticano II, de que "fora da Igreja não há salvação". Para ele, ela é a única religião verdadeira e as outras são tamsomente braços estendidos ao céu mas sem a certeza de que Deus acolha esta súplica. Pensar assim é ter pouca fé e imaginar que Deus tem o tamanho da nossa cabeça. Quem não encontrou pessoas profundamente piedosas de outras religiões, nas quais se percebe claramente a presença  de Deus? Não reconhecer tal realidade é, na verdade, pecar contra o Espírito Santo que está sempre alimentando a dimensão espiritual ao largo dos tempos históricos.

Nas minhas muitas viagens, nos encontros com culturas diferentes e com pessoas religiosas de todo tipo, me dei conta da necessidade que todos temos de aprender uns dos outros e da profunda capacidade de veneração da qual os mais diferentes povos dão convincente testemunho.

Há alguns anos, dei palestras em muitas cidades da Suécia sobre ecologia e espiritualidade. Numa ocasião me levaram quase ao pólo norte onde vivem os samis (esquimós). Eles não gostam de encontrar estrangeiros. Mas sabendo que era um teólogo da libertação, quiseram conhecer esta raridade. Vieram três líderes indígenas. O mais velho logo me perguntou:"Os índios do Brasil casam o Céu com a Terra ou não"? Eu logo entendi a intenção e respondi de pronto:"Lógico que casam, pois deste casamento nascem todas as coisas". Ao que ele, feliz, retrucou:"então são ainda índios e não são como nossos irmãos de Oslo que já não acreditam no Céu". E dai seguiu-se um dialogo profundo sobre o sentido de unidade entre Deus, o mundo, o homem, a mulher, os animais, a terra, o sol e a vida.

Experiência semelhante vivi em 2008 na Guatemala quando participei de uma belíssima celebração com sacerdotes maias junto o lago Atitlan. Havia também sacerdotisas. Tudo se realizava ao redor do fogo sagrado. Começaram invocando as energias das montanhas, das águas, das florestas, do sol e da mãe Terra. Durante a cerimônia, uma sacerdotisa se avizinhou de mim e disse:"você está muito cansado e deve ainda trabalhar bastante". Efetivamente, por vinte dias percorri, de carro, vários paises participando de eventos e dando muitas palestras. E então ela com seu polegar pressionou meu peito, na altura do coração, com tal força a ponto de quase me quebrar uma costela. Tempos depois, retornou a mim e disse:"você tem um joelho machucado". Eu lhe perguntei: "como sabe"? E ela respondeu: "eu o senti pela força da Mãe Terra". Com efeito, ao desembarcar na praia, retorci o  joelho que inchou. Levou-me junto ao fogo sagrado e por trinta a quarenta vezes passou a mão do fogo ao joelho até que esse desinchasse totalmente. Antes de terminar a celebração que durou cerca de três horas, retornou a mim e disse:"está ainda cansado". E novamente pressionou fortemente o polegar sobre meu peito. Senti estranho ardor e de repente estava  relaxado e tranqüilo como nunca antes.

São sacerdotes-xamãs que entram em contacto com as energias do universo e ajudam as pessoas no seu bem viver.
 
Certa vez perguntei ao Dalai Lama:"Qual é a melhor religião"? E ele com um sorriso entre sábio e malicioso respondeu:"É aquela que te faz melhor". Perplexo continuei: "o que é fazer-me melhor"? E ele:"aquela que te faz mais compassivo, mais humano e mais aberto ao Todo esta é a melhor". Sábia resposta que guardo com reverência até os dias de hoje.


 
Leonardo Boff é autor do livro O casamento entre o Céu e a Terra, Salamandra 2001.