sábado, 20 de março de 2010

“ A Alegoria da Caverna” - Platão

- Imagina agora o estado da natureza humana com respeito à ciência e à
ignorância, conforme o quadro que dele vou esboçar. Imagina uma caverna
subterrânea que tem a toda a sua largura uma abertura por onde entra livremente
a luz e, nessa caverna, homens agrilhoados desde a infância, de tal modo que não
possam mudar de lugar nem volver a cabeça devido às cadeias que lhes prendem as
pernas e o tronco, podendo tão-só ver aquilo que se encontra diante deles. Nas
suas costas, a certa distância e a certa altura, existe um fogo cujo fulgor os
ilumina, e entre esse fogo e os prisioneiros depara-se um caminho dificilmente
acessível. Ao lado desse caminho, imagina uma parede semelhante a esses tapumes
que os charlatães de feita colocam entre si e os espectadores para esconder
destes o jogo e os truques secretos das maravilhas que exibem.
- Estou a imaginar tudo isso.
- Imagina homens que passem para além da parede, carregando objectos de todas as
espécies ou pedra, figuras de homens e animais de madeira ou de pedra, de tal
modo que tudo isso apareça por cima do muro. Os que tal transportam, ou falam
uns com os outros, ou passam em silêncio.
- Estranho quadro e estranhos prisioneiros!
- E, no entanto, são ponto por ponto tal qual como nós. Em primeiro lugar,
julgas que percepcionarão outra coisa, de si mesmos e dos que se encontram a seu
lado, além das sombras que na sua frente se produzem, no fundo da caverna?
- Que outra coisa poderão ver, pois que, desde o nascimento, foram compelidos a
conservar a cabeça permanentemente imóvel?
- Verão, apesar disso, outras coisas além dos objectos que passam à sua
rectaguarda?
- Não.
- Se pudessem conversar uns com os outros, não concordariam em dar às sombras
que vêem os nomes dessas mesmas coisas?
- Sem dúvida.
- E se no fundo da sua prisão houvesse eco que repetisse as palavras daqueles
que passam, não imaginariam que ouviam falar as sombras mesmas que desfilam
diante dos seus olhos?
- Sim.
- E, por fim, não julgariam eles que nada existiria de real além das sombras?
- Não há dúvida.
- Pensa agora naquilo que naturalmente lhes aconteceria se fossem libertados das
suas cadeias e se fossem elucidados acerca do erro em que estavam. Liberte-se um
desses cativos, e que ele seja obrigado a levantar-se imediatamente, a voltar a
cabeça, a andar e a enfrentar a luz: nada disso poderá fazer sem grande esforço;
a luz encandear-lhe-á a vista e o deslumbramento produzido impedi-lo-á de
distinguir os objectos cujas sombras via antes. Que julgas tu que responderia se
lhe dissessem que até então apenas vira fantasmas e que agora tem ante os olhos
objectos mais reais e mais próximos da verdade? Se lhe mostrarem imediatamente
as coisas à medida que se forem apresentando, e se for obrigado, à força de
perguntas, a dizer o que é cada uma delas, não ficará perplexo e não julgará que
aquilo que dantes via era mais real do que aquilo que agora se lhe apresenta?
- Sem dúvida.
- E se o obrigassem a enfrentar o fogo, não adoeceria dos olhos? Não desviaria
os seus olhares, para dirigi-los para a sombra, que enfrenta sem dificuldade?
Não julgaria que essa sombra possui algo de mais claro e distinto do que tudo
quanto se lhe mostra?
- Certamente.
- Se agora o arrancarmos da caverna e o arrastarmos, pela senda áspera e
fragosa, até à claridade do Sol, que suplício o seu por ser assim arrastado!
Como está furioso! E, uma vez chegado à luz livre, os olhos ofuscados com o
fulgor dela, poderia ver alguma coisa da multitude de objectos a que chamamos
seres reais?
- De início ser-lhe-ia impossível.
- Necessitaria de tempo, sem dúvida, para se acostumar a eles. Aquilo que
distinguiria melhor seria, em primeiro lugar, as sombras; e, logo a seguir, as
imagens dos homens e dos mais objectos, reflectidos à superfície das águas; por
fim, os próprios objectos. Daí volveria os olhos para o céu, cuja visão
suportaria com maior facilidade durante a noite, à luz da Lua e das estrelas, do
que durante o dia, à luz do Sol.
- Sem dúvida.
- Por fim, encontrar-se-ia em condições, não só de ver a imagem do Sol nas águas
e em tudo aquilo em que se reflicta, como de olhá-lo e contemplar o verdadeiro
Sol no seu verdadeiro local.
- Sim.
- Depois disto, pondo-se a reflectir, chegaria à conclusão de que o Sol é o que
determina as estações e os anos, e o que rege todo o mundo visível e que, de
certo modo, é causa daquilo que se via na caverna.
- É evidente que chegaria gradualmente a tais reflexões.
- E se, então, se recordasse da sua primeira habitação e da ideia que aí
formavam da sabedoria, ele e os seus companheiros de escravidão, não se
regozijaria com a mudança e não teria compaixão da desgraça daqueles que
permaneciam cativos?
- Certamente.
- Crês tu que agora ele sentisse ciúmes das honras, das vaidades e recompensas
ali outorgadas àquele que mais rapidamente captasse as sombras, àquele que com
maior segurança recordasse as que iam atrás ou juntas e por tal razão seria o
mais hábil em prever a sua aparição, ou que invejasse a condição daqueles que na
prisão eram mais poderosos e mais honrados? Não preferiria, como Aquiles,
segundo Homero, passar a vida ao serviço dum pobre lavrador e sofrê-lo, a voltar
ao seu primeiro estado e às suas primitivas ilusões?
- Não duvido de que preferiria suportar todos os males possíveis a voltar a
viver de tal modo.
- Atenta, pois, nisto: se regressasse novamente à sua prisão, para voltar a
ocupar nela o seu antigo posto, não se acharia como um cego, na súbita passagem
da luz do dia para a obscuridade?
- Sim.
- E se, no entanto, ainda não distinguisse nada e, antes que os seus olhos se
houvessem refeito, o que apenas poderia acontecer depois de muito tempo, tivesse
de discutir com os mais prisioneiros sobre essas sombras, não se tornaria
ridículo aos olhos dos outros, que diriam dele que, por ter subido até lá acima,
perdera a vista, acrescentando que seria uma loucura o eles pretenderem sair do
lugar onde se encontravam, e que, se alguém se lembrasse de tirá-los dali e
levá-los para a região superior, se tornaria necessário prendê-lo e matá-lo?
- Indiscutivelmente.
- Pois, meu querido Glauco, é essa, precisamente, a imagem da condição humana. A
caverna subterrânea é este mundo visível; o fogo que a ilumina, a luz do Sol; o
prisioneiro que ascende à região superior e a contempla é a alma que se eleva at
é à esfera do inteligível. É isto, pelo menos, o que penso, já que o queres
conhecer, mas só Deus sabe se é certo. Pelo que me toca, a coisa afigura-se-me
tal como te vou comunicar. Nos últimos limites do mundo inteligível encontra-se
a ideia do bem, que só com dificuldade se percebe, mas que, todavia, não pode
ser percebida sem que se conclua que ela é a causa primeira de quanto há de bom
e de belo no universo; que ela, neste mundo visível, produz a luz e o astro do
qual a luz irradia directamente; que, no mundo visível, engendra a verdade e a
inteligência; que é preciso, enfim, ter os olhos fitos nessa ideia, se quisermos
conduzir-nos honestamente na vida pública e privada.
- Na medida em que pude compreender a tua ideia, concordo contigo.
- Tens, pois, de admitir e não estranhar que aqueles que alcançaram essa sublime
contemplação desdenhem da intervenção nos assuntos humanos e que as suas almas
aspirem, incessantemente, a fixar-se nesse lugar eminente. Assim deve ser, se
isto está em conformidade com a pintura alegórica que esbocei.
- Assim deve ser.

Hoje é o dia do Blogueiro!


Iniciei em junho de 2009. Um blog ainda jovem, indo em busca de sua maturidade. Foi numa tarde, conversando com um grande amigo virtual ( O César do blog: Administrando Pessoas) que tudo surgiu. E por coincidência, gostamos de muitos assuntos, que vão da filosofia ao desenvolvimento humano.
Hoje, além desta comemoração, comemoro também o dia de aniversário de uma de minhas filhas. A minha muito próxima futura médica! Uma parte de mim se realiza através dela. Nada mal... Sinto-me gratificada por isto.
Comecei este blog com um texto intitulado " Justo a mim me coube ser eu"... Vivemos em busca de autoria, de sensibilidade, de amor e de palavras que expliquem a inexorável busca pela felicidade. Comecei aqui com pouca pretensão, hoje um pouco mais pretensiosa, visto que este mundo virtual nos desafia a todo momento.
Sou amante da leitura, das palavras sinceras, do amor ao próximo e da família. Estas são as minhas riquezas e delas não abro mão. Escrever é um desafio constante, pois no momento que escrevo deixo de ser o que penso que sou e passo a ser um pouco mais o que sou. Parece que este ato, é uma afirmação... Sou assim, um pouco insegura, sincera, concreta, sensível, transformadora, flexível, amorosa e nada fácil...
Espero contar sempre com a presença de vocês. Venham me ver e participar! E quando não gostarem de algo, é só falar ou GRITAR!.
Estarei por aqui.
Obrigada a todos.
Beijos, Natalícia

quarta-feira, 17 de março de 2010

" Família, amo vocês"- Luc Ferry


As contribuições desse filósofo são atuais e merecem ser lidas com toda imparcialidade que o assunto nos remete. Cabe ressaltar que no ano de 2008 esse texto foi lido por inúmeros universitários, tendo sido criticado pelos acadêmicos.
Portanto,aqui estão algumas ideias desse autor para a nossa apreciação.


"No Ocidente, não se aceita mais morrer por um deus, uma pátria ou uma revolução. Mas não conheço pai que não arriscaria a vida pela prole"
O francês Luc Ferry, de 57 anos, é um caso raro de filósofo que transforma seus livros em best-sellers. Sua obra Aprender a Viver, lançada em 2006, vendeu 700 000 exemplares, 40 000 deles no Brasil. Seu segredo é combinar formação acadêmica sólida com um texto leve e bem-humorado. Ferry se alinha com o chamado humanismo secular. Essa corrente da filosofia propõe o uso da razão crítica em vez da fé na busca de respostas para os assuntos que mais intrigam a humanidade, como o amor, a morte e a procura da felicidade. Ferry também atua na política. Como ministro da Educação da França de 2002 a 2004, foi o mentor da polêmica lei que baniu o uso de véu pelas estudantes muçulmanas nas escolas públicas francesas.

Atualmente, ele não ocupa cargo oficial, mas sabe-se que o presidente francês Nicolas Sarkozy costuma ouvir suas opiniões com atenção. A nova obra de Ferry, Famílias, Amo Vocês, acaba de chegar às livrarias brasileiras. Nela, o filósofo defende a idéia de que a família é a única coisa que resta de sagrado no mundo. Ferry deu a seguinte entrevista.

Em seu novo livro, Famílias, Amo Vocês, o senhor argumenta que a família substituiu a religião como entidade sagrada no mundo moderno. Isso não contradiz a constatação do aumento no número de fiéis em diversas igrejas de todo o mundo?

Essa corrida para as igrejas não chega nem perto do que acontece quando o assunto é família. Pergunte aos milhões desses novos fiéis se eles morreriam pelo seu deus. A resposta será não. A família é a única entidade realmente sagrada na sociedade moderna, aquela pela qual todos nós, ocidentais, aceitaríamos morrer, se preciso. Os únicos seres pelos quais arriscaríamos a vida no mundo de hoje são aqueles próximos de nós: a família, os amigos e, em um número bem menor, pessoas mais distantes que nos causam grande comoção. No século XX, o ser humano virou sagrado.
O que o senhor considera sagrado?
Para entender o que é sagrado é preciso conhecer a história do sacrifício, ou seja, por quais razões os humanos já aceitaram sacrificar a própria vida. No fundo, esse é o significado do sagrado: algo pelo qual vale a pena morrer. O homem abriu mão da vida por três grandes causas através dos tempos: por Deus, pela pátria e pelas revoluções. Matou e provocou a morte de milhões de pessoas em guerras religiosas, batalhas nacionalistas e embates revolucionários. Hoje, no Ocidente, ninguém mais aceita morrer por um deus, um país ou um ideal. Há, sim, religiosos extremistas no Islã. Há gente na Chechênia ou na Ossétia disposta a morrer pela nação. Mas garanto que não há cidadãos com tais intenções na Alemanha, na França ou nos Estados Unidos. Em contrapartida, não conheço pai que não arriscaria a vida por seus filhos. Os filhos se tornaram o principal canal para o homem tentar transcender espiritualmente. As crianças substituíram as instituições despedaçadas que citei acima.
Os pais de antigamente amavam menos seus filhos que os de hoje?
O amor dos pais pelos filhos é instintivo e descrito desde a Antiguidade em mitos e lendas. Esse sentimento, porém, estava longe de ser uma prioridade para os casais. O escritor francês Michel de Montaigne (1533-1592), celebrado como grande humanista, confessou não se lembrar do número exato de filhos seus que morreram enquanto ainda eram amamentados. O filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), um dos próceres do Iluminismo, abandonou seus cinco filhos sem dó nem piedade. Esses exemplos parecem bizarros, mas temos de lembrar que, até a Idade Média, não havia sequer o conceito de infância. Foi entre os séculos XVII e XVIII que a infância passou a ser definida como um período de fragilidade e ingenuidade, no qual se deve prover as crianças de mimos e carinhos.
O que provocou essas mudanças?
Praticamente todas as relações familiares da sociedade contemporânea têm origem no casamento por amor, que nasceu com o capitalismo. Antes disso, o casamento se destinava a atender a uma série de interesses. O sentimento era o que menos contava. Casava-se para dar continuidade à família, manter a linhagem e a propriedade. Com o capitalismo e tudo o que é derivado dele, como o salário e o mercado de trabalho, uma nova ordem se estabeleceu. As mulheres, antes confinadas em suas casas, foram para as cidades trabalhar na casa dos burgueses, como empregadas, ou se tornaram operárias nas fábricas. Essa mulher começou a ganhar o seu dinheiro – pouco, mas seu – e a conquistar a independência. Com isso, houve uma grande ruptura. A percepção a respeito dos filhos e das crianças em geral também sofreu grande modificação.
A freqüência com que os casais hoje se divorciam e iniciam novos relacionamentos não desmonta o argumento de que a família é sagrada?
Essa idéia não se sustenta nem do ponto de vista histórico nem do filosófico. Há vários argumentos que desmentem os clichês hoje propagados sobre o declínio do casamento e o fim da família nuclear. A família na Idade Média era muito mais dividida do que hoje. Havia muito mais pais e mães sozinhos cuidando de seus filhos. Por causa da elevada taxa de mortalidade, as pessoas se casavam mais vezes e tinham mais filhos com outros parceiros. Quem alardeia o declínio da instituição familiar esquece que o divórcio foi inventado junto com o casamento por amor. A partir do momento em que a união entre duas pessoas se ampara apenas na lógica do sentimento, basta que o amor se apague para que outro amor se imponha. A família burguesa é aparentemente estável, mas na maioria dos casos está carcomida por infelicidades. Ela é inseparável de outra instituição: a infidelidade. Muitas mulheres sacrificam a profissão e, em seguida, a vida afetiva por um marido que as engana.

"Quem alardeia o declínio da família esquece que o divórcio foi inventado junto com o casamento por amor. Quando a união se ampara apenas no sentimento, basta que o amor se apague para que outro amor se imponha"
Uma sociedade sem religiões e sem ideologias, como o senhor a vislumbra, não é contrária à índole humana?
De jeito nenhum. Muitas religiões e ideologias fizeram as sociedades e os indivíduos sacrificar-se por ideais inúteis. O sociólogo alemão Max Weber costumava dizer que era possível encontrar os valores tradicionais do sacrifício no código do mar. Segundo esse código, o comandante de um navio deve morrer com sua embarcação naufragada, mesmo quando os passageiros e a tripulação se salvam. Para continuar a metáfora, eu diria que hoje ninguém mais está disposto a morrer pelo casco do navio, mas somente pelos passageiros que ele abriga. Isso é um grande progresso. Não tenho nenhuma saudade dos extremistas religiosos ou nacionalistas que provocaram a morte de 50 milhões de pessoas na II Guerra.
O senhor argumenta que o amor dá sentido à vida. A busca desenfreada pelo amor não causa mais sofrimento?
A condição do homem moderno é mais trágica do que nunca. O casamento por amor nos condiciona a amar mais e mais. A perda do ser amado tornou-se um luto. Isso só aumenta o descontentamento do mundo ocidental, no qual o homem se transformou num ser eternamente insatisfeito.
Então o senhor concorda com a tese de muitos filósofos contemporâneos de que o homem nunca foi tão infeliz?
Há um descontentamento generalizado no mundo moderno. A sociedade se interessa mais pelos meios em si do que pelos fins. Um olhar sobre o Iluminismo ajuda a compreender esse novo mundo. As mentes mais brilhantes do século XVIII buscavam nas ciências e nas artes emancipar a humanidade do obscurantismo da Idade Média. Tudo era feito com o objetivo de, no fim, alcançar a liberdade e a felicidade. Hoje, o movimento das sociedades não se inspira em ideais superiores em termos de civilização. A sociedade se movimenta no sentido de estabelecer a concorrência acirrada entre todos os indivíduos, sem objetivos finais claros. A história não se move pela aspiração a um mundo melhor, mas pela ação mecânica da competição. O êxito pessoal é o que importa. Precisamos ter poder, dinheiro, um carro novo, uma mulher nova, os filhos mais bonitos, tudo para conseguir o reconhecimento alheio e nos sentir superiores aos outros. Como dizia o filósofo romano Sêneca, enquanto esperamos viver, a vida passa rapidamente.
Dentro dessa perspectiva, a felicidade é possível?
O filósofo alemão Immanuel Kant tem um ótimo argumento sobre isso. Se a felicidade fizesse parte da natureza humana, Deus não nos teria dado a inteligência. Desde sempre o ser humano vive seus conflitos e tenta gerenciá-los da forma que pode. Hoje, vivemos na era do hiperconsumo. O que nos dá a sensação de progredir, de ser felizes, pelo menos momentanea-mente, é comprar, comprar e comprar. Claro que isso não basta. A lógica contemporânea aumenta a insatisfação e nos incute medos cotidianos e recorrentes.
Que medos acometem o homem contemporâneo?
Nós, ocidentais, temos medo de tudo. Da velocidade, do sexo, do álcool, do tabaco, da carne vermelha, de frango, da Europa, do efeito estufa, da globalização, das notas escolares das crianças, e por aí vai. Todo ano se acrescenta um novo medo aos anteriores. Na época em que era ministro da Educação, fiquei com medo quando vi jovens franceses que mal tinham saído da universidade fazendo passeatas em defesa da aposentadoria deles. Em meus anos no governo, nunca recebi uma delegação sindical que não começasse a conversa com um "Senhor, estamos muito preocupados". E não há nenhuma ironia nisso. O medo é uma das paixões dominantes das sociedades democráticas. Ele não existia dessa forma no Iluminismo. Quando eu era criança, era feio ter medo. Superá-lo era um dos marcos da chegada à idade adulta.
Hoje, ter medo não implica culpa. É através do medo que os movimentos ecológicos radicais, por exemplo, se impõem.

"A sociedade atual não se inspira em ideais superiores em termos de civilização, como no Iluminismo. O que nos dá a sensação de progredir é comprar, comprar, comprar. Essa lógica apenas aumenta nossa insatisfação"

Como os medos cotidianos prejudicam a sociedade?
Qualquer ameaça, como o terrorismo, o aquecimento global ou a gripe aviária, desperta uma neurose global. A angústia que essa histeria causa individualmente é mais prejudicial do que a ameaça a que ela se contrapõe. Veja o exemplo do aquecimento global. Aos olhos das novas ideologias, a natureza é admirável e a ciência, ameaçadora e maléfica.
Como ministro da Educação, o senhor foi acusado de racista ao banir o uso de véu pelas estudantes muçulmanas e de solidéu pelos judeus nas escolas públicas.
O senhor tomaria essa medida novamente?
Certamente. Em primeiro lugar, essa lei teve a aprovação de 75% dos franceses. Foi apoiada tanto pela direita quanto pela esquerda, o que é muito raro na França, uma nação singular. Nela convivem enormes comunidades judaicas e muçulmanas. Só há mais judeus em Israel e nos Estados Unidos. Estimamos que existam 5 milhões de muçulmanos no país. Após o início da segunda intifada, vimos aumentar exponencialmente os conflitos entre os dois grupos. O mínimo que poderíamos fazer era deixar nossas crianças fora desse clima de guerra. Não foi uma medida anti-religiosa, muito menos racista, mas de promoção da paz.
Seu livro anterior, Aprender a Viver, foi um enorme sucesso mesmo tratando de um assunto que não atrai muitos leitores, a filosofia. A que o senhor atribui esse êxito?
O ser humano precisa da filosofia mais do que imagina. A filosofia grega surgiu para ajudar o homem a superar seus medos e angústias e, assim, encontrar a serenidade. Os gregos propunham a reflexão como exercício de sabedoria. As principais correntes filosóficas são, na verdade, grandes doutrinas de salvação, assim como as religiões. A diferença entre religião e filosofia é que a primeira tenta encontrar a paz interior e a felicidade através da fé, enquanto a outra busca o mesmo pela razão, sem a intervenção de um deus. Mais do que nunca, vivemos num mundo no qual a religião não é suficiente para dar ao homem as respostas que ele procura.

“ A morte do tempo”- segundo Domenico de Massi


 

O sociólogo italiano Domenico de Massi, que em seus estudos e conferências prega as horas livres como estímulo à criatividade, faz alguns alertas e alfineta impiedosamente quem desperdiça seu tempo participando ou assistindo reality show, que chegou em terras tupiniquins com nome de Casa dos Artistas ou Big Brother. Uma verdadeira febre em vários países além do Brasil, esses programas demonstram que ter uma infinidade de horas à disposição para passar o tempo não assegura o surgimento de gênios. O que parece que sai fortalecido, é o papel que o ócio cumpria historicamente no imaginário popular: o pai de todos os pecados.

O que estaria sendo necessário na opinião do sociólogo, é a necessidade de educação para desfrutar o ócio, que ainda é considerado um perigo para a sociedade. O que de fato estes programas revelam, são grupos de pessoas que não conseguem dar sentido ao tempo e ao ócio, o que muitas vezes nem culpa deles são. O negócio, é que não foram educadas para isso. O pior é que do outro lado da tela, há milhões de pessoas que também poderiam estar aproveitando melhor o tempo livre, o que leva o pensador a concluir que programas desse tipo são a morte do tempo.

O sociólogo alerta que boa parte dos competidores estará destruída dentro de um ano. Ele dá o testemunho de um jovem que caiu em grande depressão depois de participar do Grande Fratello, que é como se chama a versão italiana do programa. Esse personagem descobriu apenas tardiamente que era uma celebridade descartável e que cairia fora a medida que outras celebridades igualmente descartáveis iam sendo construídas. Foi o triste desperdício de uma vida humana. Enfim, acabam sendo vítimas tanto os que estão atrás de fama instantânea e sucesso fácil, quanto quem os vê deliciando-se com a farsa que ali é encenada. Neste triste desperdício de tempo e de vidas humanas, o único beneficiado é o empreendedor do sistema midiático que aproveita para capitalizar um pouco mais enquanto houver espaço para esse tipo de entretenimento.

Esses programas, constituem na verdade, caricaturas grotescas se levado em conta o personagem Big Brother, criado pelo escritor George Orwel em sua história que leva por título apenas uma data: 1984. Esse autor é considerado pela crítica, como o escritor político mais influente do século XX. Num exercício de reflexão logo após a segunda guerra mundial, ele denunciava as formas de totalitarismo que haviam surgido na primeira metade do século mas que ainda estavam presentes sob o governo de Stálin na União Soviética. Neste caso, o personagem que ele inventou, era o Chefe de Estado que na sua alegoria vigiava o cidadão nos mínimos detalhes durante 24 horas por dia. Em síntese, o livro de Orwel constitui um apavorante retrato de uma sociedade totalitária que pune o amor, destrói e banaliza a intimidade das pessoas e distorce a verdade. Os globalitarismos, ou seja, as formas de totalitarismo em tempos de globalização, fizeram com que muitas vezes, por estes dias, se lembrasse a história de Orwel. A mídia, na falta de algo mais criativo, roubou o personagem de Orwel e numa inversão grosseira reinventou a história de acordo com seus interesses, pois havia espaço para isso. Ao banalizar a intimidade e o ócio, o sistema midiático transformou artistas e espectadores em vítimas e num golpe de misericórdia, matou o precioso tempo para os que acabaram caindo na armadilha.

 Fonte: WWW.uol.com.br/entrevista

terça-feira, 16 de março de 2010

Intervenção Psicopedagógica com os Idosos


 



"Envelhecer bem é um segredo que todos devemos conhecer e cultivar desde já, enquanto aprendemos a conviver com os idosos, ajudando-os a superar as mazelas da idade e a ganhar uma paz e serenidade interiores que transpareçam."
(Clara Janés e Luz Maria de La Fuente)

A educação permanente acompanha o indivíduo durante toda a vida, e tem um papel relevante, pois possibilita ao idoso promover ações de integração , para o resgate de sua dignidade, de sua participação como cidadãos produtivos e em suas atividades da sociedade. É imprescindível ressaltar, sobre o processo de envelhecimento e a velhice, refletir com realismo e bom senso sobre o idoso e o contexto em que está inserido. A educação configura-se como uma alavanca de resgate para a auto-estima, autoconfiança, qualidade de vida dessa faixa etária. A educação é um direito de todos.
Os idosos também possuem potencial a ser desenvolvido, e a importância dessa clientela com relação à aprendizagem não é senão um preconceito criado e sustentado socialmente. O idoso é capaz de aprender, como também de se adaptar às novas condições e exigências da vida, apenas deve ser respeitado o próprio ritmo individual que, muitas vezes, pode evidenciar-se mais lento do que na juventude. O ritmo diferenciado não se identifica com incapacidade. A mente quanto mais utilizada, mais se torna potente. O potencial interno do indivíduo deve ser incentivado, seu espírito deve estar aberto para fatos novos; o tédio, o ócio e o medo são sentimentos que isolam o idoso do convívio com as pessoas.


 

As pessoas têm capacidade de aprender no decorrer de sua existência. Para tanto, precisam, apenas serem motivadas, afinal a vida sedentária leva à imobilização, a falta de estímulos intelectuais conduz à estagnação cognitiva.

Intervenção Psicopedagógica

O olhar psicopedagógico deverá romper barreiras, procurando sintetizar as ações seja qual for a faixa etária. O trabalho do psicopedagogo se dá numa situação de relação entre pessoas, a nossa objetividade é reinserir-se, reciclar-se no meio social.
A intervenção psicopedagógica reforça a participação e integração do idoso na sociedade repudiando a segregação e o isolamento da população idosa.

É necessário desenvolver um trabalho de auto-estima, minimizando o sentimento de solidão e abandono, e aumentando as redes sociais destas pessoas. Uma das formas de integração social do idoso é possibilitar sua convivência com crianças e jovens, é uma forma de afetividade completa. Como podem, viver os idosos que são sozinhos ou que são considerados um peso para a sua família? Afinal não tirar o idoso do seu ambiente social, do contexto de suas lembranças, o que lhe proporciona uma sensação de segurança e conforto.
Enfim, podemos dizer que para oferecermos ao idoso um cuidado efetivo consciente e compartilhado, devemos, então, considerar o sujeito e seus projetos de vida, incluindo nas intervenções as diferentes formas de viver, as concepções, os valores, os interesses e as necessidades individuais e coletivas.


 

Fonte: Psicopedagogia online

segunda-feira, 15 de março de 2010

“Texto de Marina Silva”




Teve um momento, vendo Avatar, que me peguei levando a mão à frente para tocar a gota d´água sobre uma folha, tão linda e fresca. Do jeito que eu fazia quando andava pela floresta onde me criei, no Acre. A guerreira na'vi bebendo água na folha como a gente bebia. No período seco, quando os igarapés quase desapareciam, o cipó de ambé nos fornecia água. Esse cipó é uma espécie de touceira que cai lá do alto das árvores, de quase 35 metros, e vai endurecendo conforme o tempo passa. Mas os talos mais novos, ainda macios, podem ser cortados com facilidade. Então, a gente botava uma lata embaixo, aparando as gotas, e quando voltava da coleta do látex, a lata estava cheia. Era uma água pura, cristalina, que meu pai chamava de água de cipó. E aprendíamos também que se nos perdêssemos na mata, era importante procurar cipó de ambé, para garantir a sobrevivência.


Me tocou muito ver a guerreira na'vi ensinando os segredos da mata. Veio à mente minhas andanças pela floresta com meu pai e minhas irmãs. Ele fazia um jogo pra ver quem sabia mais nomes de árvores. Quem ganhasse era dispensada, ao chegar em casa, de cortar cavaco para fazer o fogo e defumar a borracha que estávamos levando. A disputa era grande e nisso ganhávamos cada vez mais intimidade com a floresta, suas riquezas e seus riscos.


A gente aprendia a reconhecer bichos, árvores, cipós, cheiros. Catávamos a flor do maracujá bravo pra beber o néctar, abrindo com cuidado o miolinho da flor. Lá se encontrava um tiquinho de mel tão doce que às vezes dava até agonia no juízo, como costumávamos dizer.


É incrível revisitar, misturada à grandiosidade tecnológica e plástica de Avatar, a nossa própria vida, também grandiosa na sua simplicidade. Sofrida e densa, cheia de riscos, mas insubstituível em beleza e força. Éramos muito pobres, mas não passávamos fome. A floresta nos alimentava. A água corria no igarapé. Castanha, abiu, bacuri, breu, o fruto da copaiba, pama, taperebá, jatobá, jutai, todas estavam ao alcance. As resinas serviam de remédio, a casca do jatobá para fazer chá contra anemia. Folha de sororoca servia pra assar peixe e também conservar o sal. Como ele derretia com a umidade, tinha que tirar do saco e embrulhar na folha bem grande, que geralmente nasce em região de várzea. Depois amarrava com imbira e deixava pendurado no alto do fumeiro para que o calor mantivesse o sal em boas condições. Aprendi também com meu pai e meu tio a identificar as folhas venenosas que podiam matar só de usá-las para fazer os cones com que bebíamos água na mata.


O filme foi um passeio interno por tudo isso. Chorei diversas vezes e um dos momentos mais fortes foi quando derrubam a grande árvore. Era a derrubada de um mundo, com tudo o que nele fazia sentido. E enquanto cai o mundo, cai também a confiança entre os diferentes, quando o personagem principal se confessa um agente infiltrado para descobrir as vulnerabilidades dos na'vi. E, em seguida, a grande beleza da cena em que, para ser novamente aceito no grupo, tem a coragem de fazer algo fora do comum, montando o pássaro que só o ancestral da tribo tinha montado, num ato simbólico de assunção plena de sua nova identidade.


O filme também me remeteu ao aprendizado ao contrário, quando fui para a cidade e comecei a aprender os códigos daquele mundo tão estranho para mim. Ali fui conduzida por pessoas que me ensinaram tudo, me apontaram as belezas e os riscos. E também enfrentei, junto com eles, o mal e a violência da destruição.


Impossível não fazer as conexões entre o mundo de Pandora, em Avatar, e nossa história no Acre. Principalmente quando, a partir da década de 70 do século passado, transformaram extensas áreas da Amazônia em fazendas, expulsando pessoas e comunidades, queimando casas, matando índios e seringueiros. A arrasadora chegada do "progresso" ao Acre seguiu, de certa forma, a mesma narrativa do filme. Nossa história, nossa forma de vida, nosso conhecimento, nossas lendas e mitos, nada disso tinha valor para quem chegava disposto a derrubar a mata, concentrar a propriedade da terra, cercar, plantar capim e criar boi. Para eles era "lógico" tirar do caminho quem ousava se contrapor. Os empates, a resistência, a luta quase kamikaze para defender a floresta, usando os próprios corpos como escudos, revi internamente tudo isso enquanto assistia Avatar.


A ficção dialoga muito profundamente com a realidade. Seres humanos, sem conhecimento sensível do que é a natureza, chegam destruindo tudo em nome de um resultado imediato, com toda a virulência de quem não atribui nenhum valor àquilo que está fora da fronteira estreita do seu interesse imediato. No filme, como o valor em questão era a riqueza do minério, a floresta em si, com toda aquela conectividade, toda a impressionante integração entre energias e formas de vida, não vale nada para os invasores. Pior, é um estorvo, uma contingência desagradável a ser superada.


Encontrei na tela, em 3D e muita beleza plástica e criatividade, um laço profundo e emocionante com a nossa saga no Acre, com Chico Mendes. E percebi que, assim como no filme, éramos considerados praticamente alienígenas, não humanos, não portadores de direitos e interesses diante dos que chegavam para ocupar nosso espaço.


É uma visão tão arrogante, tão ciosa da exclusividade do seu saber, que tudo o mais é tido como desimportante e, consequentemente, não deve ser levado em conta. É como se se pudesse, por um ato de vontade e comando, anular a própria realidade. Como se o que está no lugar que se transformou em seu objeto de desejo, fosse uma anomalia, um exotismo, uma excrescência menor.


E, afinal, essa arrogância vem da ignorância e da falta de instrumentos e linguagem para apreender a riqueza da diferença e extrair dela algum significado relevante e agregador de valor. Numa inversão trágica, a diferença é vista apenas como argumento para subjugar, para estabelecer autoritariamente uma auto-definida superioridade. Poderíamos chamar tudo isso de síndrome do invasor, cujo principal sintoma é a convicção cega e ensandecida, movida a delírios de poder de mando e poder monetário, de ser o centro do mundo.


No Acre nos deparamos com muitos que viam nossos argumentos como sinônimo de crendices, superstição. Coisa de gente preguiçosa que seria "curada" pelo suposto progresso de que eles se achavam portadores. Por outro lado, também chegaram muitos forasteiros que, tal como a cientista de Avatar e o grupo que a seguiu, compreenderam que nosso modo de vida e a conservação da floresta eram uma forma de conhecimento que poderia interagir com o que havia de mais avançado no universo da tecnologia, da pesquisa acadêmica e das propostas políticas de mudanças no modelo de desenvolvimento que eram formuladas em todo o mundo. Com eles, trocamos códigos culturais, aprendemos e ensinamos.


Fiquei muito impressionada como esse processo está impregnado no personagem principal de Avatar. Ele se angustia por não saber mais quem é, e só recupera sua integridade e identidade real quando começa a se colocar no lugar do outro e ver de maneira nova o que antes lhe parecia tão certo e incontestável. Sua perspectiva mudou quando viu a realidade a partir do olhar e dos sentimentos do outro, fazendo com que a simbiose presente no avatar, destinado a operar a assimilação e subjugação dos diferentes, se transformasse num poderoso instrumento para ajudá-los a resistir à destruição.


Pode-se até ver no filme um fio condutor banal, uma história de Romeu e Julieta intergalática. Não creio que isso seja o mais importante. Se os argumentos não são tão densos, a densidade é complementada pela imagem poderosa e envolvente, pelo lúdico e a simplicidade da fala. Se houvesse uma saturação de fala, de conteúdos, creio que perderia muito. A força está em, de certa maneira, nos levar a sermos avatares também e a tomar partido, não só ao estilo do Bem contra o Mal, mas em favor da beleza, da inventividade, da sobrevivência de lógicas de vida que saiam da corrente hegemônica e proclamem valores para além do cálculo material que justifica e considera normais a escravidão e a destruição dos semelhantes e da natureza.


E, se nada mais tenho a dizer sobre Avatar, quero confessar que aquele povo na'vi tão magrinho e tão bonito foi para mim um alento. Quando fiquei muito magra, na adolescência, depois de várias malárias e hepatite, me considerava estranha diante do padrão de beleza que era o das meninas de pernas mais grossas, mais encorpadas. Sofria por ser magrinha demais, sem muitos atributos. Agora tenho a divertida sensação de que, finalmente, achei o meu "povo", ainda que um pouco tarde. Houvesse os navi na minha adolescência e, finalmente, eu teria encontrado o meio onde minhas medidas seriam consideradas perfeitamente normais.



Fonte: enviado por email pela amiga Sandra Celano


domingo, 14 de março de 2010

“Dispenso esta rosa”

Dia 8 de março seria um dia como qualquer outro, não fosse pela rosa e os parabéns. Toda mulher sabe como é. Ao chegar ao trabalho e dar bom dia aos colegas, algum deles vai soltar: "parabéns". Por alguns segundos, a gente tenta entender por que raios estamos recebendo parabéns se não é nosso aniversário (exceção, claro, à minoria que, de fato, faz aniversário neste dia). Depois de ficar com cara de bestas, num estalo a gente se lembra da data, dá um sorriso amarelo e responde "obrigada", pensando: "mas por que eu deveria receber parabéns
por ser mulher?".
Mais tarde, chega um funcionário distribuindo rosas. Novamente, sorriso amarelo e obrigada. É assim todos os anos. Quando não é no trabalho, é em alguma loja.

Quando não é numa loja, é no supermercado. Todos os anos, todo 8 de março: é sempre a maldita rosa.
Dizem que a rosa simboliza a "feminilidade", a delicadeza. É a mesma metáfora que usam para coibir nossa sexualidade "da supervalorização da virgindidade é que saiu o verbo "deflorar" (como se o homem, ao romper o hímen de uma mulher, arrancasse a flor do solo, tomando-a para si e condenando-a - afinal, depois de arrancada da terra, a flor está fadada à morte). É da metáfora da flor, portanto, que vem a idéia de que mulheres sexualmente ativas são "putas", inferiores, menos respeitáveis.
A delicadeza da flor também é sua fraqueza. Qualquer movimento mais brusco lhe arranca as pétalas.

Dizem o mesmo de nós: que somos o "sexo frágil" e que, por isso, devemos ser protegidas. Mas protegidas do quê? De quem? A julgar pelo número de estupros, precisamos de proteção contra os homens. Ah, mas os homens que estupram são psicopatas, dizem. São loucos. Não é com estes homens que nós namoramos e casamos, não é a eles que confiamos a tarefa de nos proteger. Mas, bem, segundo pesquisa Ibope/Instituto Patricia Galvão, 51% dos brasileiros dizem conhecer alguma mulher que é agredida por seu parceiro. No resto do mundo, em 40 a 70 por cento dos assassinatos de mulheres, o autor é o próprio marido
ou companheiro. Este tipo de crime também aparece com freqüência na mídia. No entanto, são tratados como crimes "passionais" - o que dá a errônea impressão de que homens e mulheres os cometem com a mesma freqüência, já que a paixão é algo que acomete ambos os sexos. Tratam os homens autores destes crimes como "românticos" exagerados, príncipes encantados que foram longe demais. No entanto, são as mulheres as neuróticas nos filmes e novelas. São elas que "amam demais", não os homens.

Mas a rosa também tem espinhos, o que a torna ainda mais simbólica dos mitos que o patriarcado atribuiu às mulheres. Somos ardilosas, traiçoeiras, manipuladoras, castradoras. Nós é que fomos nos meter com a serpente e tiramos o pobre Adão do paraíso (como se Eva lhe tivesse enfiado a maçã goela abaixo, como se ele não a tivesse comido de livre e espontânea vontade). Várias culturas têm a lenda da vagina dentata. Em Hollywood, as mulheres usam a "sedução" para prejudicar os homens e conseguir o que querem. Nos intervalos do canal Sony, os machos são de "respeito" e as mulheres têm "mentes perigosas". A mensagem subliminar é: "cuidado, meninos, as mulheres são o capeta disfarçado".
E, foi com medo do capeta que a sociedade, ao longo dos séculos, prendeu as mulheres dentro de casa.

Como se isso não fosse suficiente, limitaram seus movimentos com espartilhos, sapatos minúsculos (na China), saltos altos. Impediram-na que estudasse, que trabalhasse, que tivesse vida própria. Ela era uma propriedade do pai, depois do marido. Tinha sempre de estar sob a tutela de alguém, senão sua "mente perigosa" causaria coisas terríveis.
Mas dizem que a rosa serve para mostrar que, hoje, nos valorizam. Hoje, sim. Vivemos num mundo "pós-feminista" afinal. Todas essas discriminações acabaram! As mulheres votam e trabalham! Não há mais nada para conquistar! Será mesmo? Nos últimos anos, as diferenças salariais entre homens e mulheres (que seguem as mesmas profissões) têm crescido no Brasil, em vez de diminuir. Nos centros urbanos, onde a estrutura ocupacional é mais complexa, a disparidade tende a ser pior. Considerando que recebo menos para desempenhar o mesmo serviço, não parece irônico que o meu colega de trabalho me dê os parabéns por ser mulher?
Dizem que a rosa é um sinal de reconhecimento das nossas capacidades.

Mas, no ranking de igualdade política do Fórum Econômico Mundial de 2008, o Brasil está em 100º lugar entre 130 países. As mulheres têm 11% dos cargos ministeriais e 9% dos assentos no Congresso - onde, das 513 cadeiras, apenas 46 são ocupadas por elas. Do total de prefeitos eleitos no ano passado, apenas 9,08% são mulheres. E nós somos 52% da população.*
*A rosa também simboliza beleza. Ah, o sexo belo. Mas é só passar em frente a uma banca de revistas para descobrir que é exatamente o contrário. Você nunca está bonita o suficiente, bobinha. Não pode ser feliz enquanto não emagrecer. Não pode envelhecer. Não pode ter celulite (embora até bebês tenham furinhos na bunda). Você só terá valor quando for igual a uma modelo de 18 anos (as modelos têm 17 ou 18 anos até quando a propaganda é de creme rejuvenescedor!).

Mas mesmo ela não é perfeita: tem de ser photoshopada. Sua pele é alterada a ponto de parecer de plástico: ela não tem espinhas nem estrias nem olheiras nem cicatrizes nem hematomas, nenhuma dessas coisas que a gente tem quando
vive. Ela sorri, mas não tem linhas ao lado da boca. Faz cara de brava, mas sua testa não se franze. É magérrima (às vezes, anoréxica), mas não tem nenhum osso saltando. É a beleza impossível, mas você deve persegui-la mesmo assim, se quiser ser "feminina". Porque, sim, feminilidade é isso: é "se cuidar". Você não pode relaxar. Não pode se abandonar (em inglês, a expressão usada é exatamente esta: "let yourself go"). Usar uma porrada de cosméticos e fazer plásticas é a maneira (a única maneira, segundo os publicitários) de mostrar a si mesma e aos outros que você *se ama*. "Você se ama? Então corrija-se". Por mais contraditória que pareça, é esta a mensagem.*
*Todo dia 8 de março, nos dão uma rosa como sinal de respeito.

No entanto, a misoginia está em toda parte. Os anúncios e ensaios de moda glamurizam a violência contra a mulher. Nas propagandas de cerveja e programas humorísticos, as mulheres são bundas ambulantes, meros objetos sexuais. A pornografia mainstream (feita pela Hollywood pornô, uma indústria multibilionária) tem cada vez mais cenas de violência, estupro e simulação de atos sexuais feitos contra a vontade da mulher. Nos videogames, ganha pontos quem atropelar prostitutas.

*Todo dia 8 de março, volto para casa e vejo um monte de mulheres com rosas vermelhas na mão, no metrô. É um sinal de cavalheirismo, dizem. Mas, no mesmo metrô, muitas mulheres são encoxadas todos os dias. Tanto que o Rio criou um vagão exclusivo para as mulheres, para que elas fujam de quem as assedia. Pois é, eles não punem os responsáveis. Acham difícil. Preferem isolar as vítimas. Enquanto não combatermos a idéia de que as mulheres que andam sozinhas por aí são "convidativas", propriedade pública, isso nunca vai deixar de existir. Enquanto acharem que cantar uma mulher na rua é elogio, isso nunca vai deixar de existir.
Atualmente, a propaganda da NET mostra um pinguim (?) dizendo "ê lá em casa" para uma enfermeira. Em outro comercial, o russo garoto-propaganda puxa três mulheres para perto de si, para que os telespectadores entendam que o "combo" da NET engloba três serviços. Aparentemente, temos de rir disso. Aparentemente, isso ajuda a vender TV por assinatura. Muito provavelmente, os publicitários criadores desta peça não sabem o que é andar pela rua sem ser interrompida por um completo desconhecido ameaçando "chupá-la todinha".

Então, dá licença, mas eu dispenso esta rosa. Não preciso dela. Não a aceito. Não me sinto elogiada com ela. Não quero rosas. Eu quero igualdade de salários, mais representação política, mais respeito, menos violência e menos amarras. Eu quero, de fato, ser igual na sociedade. Eu quero, de fato, caminhar em direção a um mundo em que o feminismo não seja mais necessário.

(Autoria desconhecida - recebida por email)