quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Um Certo Ivan Illich

Neste mês de dezembro, cheio de emoções para os brasileiros, passou despercebida a morte na Alemanha de um certo Ivan Illich. Para os jovens, esse nome talvez não queira dizer nada ou, no máximo, uma vaga referência ao personagem de Tolstoi. No entanto, o homem real, personagem de si mesmo, peregrino, cosmopolita e rebelde insolente, que alimentou tantas lendas, foi quem melhor entendeu as arapucas em que entrava nossa civilização.

Para quem o conheceu e teve a chance de debater com ele idéias insólitas e subversivas, é impossível enfrentar um engarrafamento sem lembrar-se que ele, já nos anos sessenta, dizia do absurdo que é consagrar uma parte dos seus dias a trabalhar para comprar e manter um automóvel, que supostamente nos faz andar mais rápido, e acabar por deslocar-se na velocidade de um jumento da Idade Média. Esse um de seus primeiros insights sobre os problemas sem solução que estamos vivendo, e que podem ser sintetizados no sentimento de perda de poder diante da tecnologia.
Aquela que deveria libertar os homens da servidão do trabalho e que acabou, cumprindo a profecia de Illich, por nos escravizar a todos, não só pela dependência que cria, mas sobretudo por nos algemar a um mundo produtivo cada vez mais invasivo e exigente, onde ganhamos duramente o necessário para comprar os novos produtos que a sociedade de consumo impõe como indispensáveis. Inverteu-se o projeto: a relação dos humanos com a tecnologia virou a relação da tecnologia com os humanos.

Amigo e debatedor de Paulo Freire, Illich substituiu a proposta de uma “pedagogia dos oprimidos” pela crítica à “opressão da pedagogia”. Hoje, uma reunião de educadores, em que todos se queixam do fracasso da escola, ecoa quem primeiro percebeu que a educação se transformara em um bem de consumo, um produto como qualquer outro, fabricado, garantido e vendido pela instituição escola, embora seja fora dos seus muros que aprendemos a maior parte do que sabemos.

É assim porque a escola é parte integrante de uma sociedade que acredita no consumo ilimitado. A corrida aos diplomas e a acumulação de títulos avalizam o bom funcionamento intelectual e são condição prévia do êxito social. Enquanto isso, toda iniciativa pessoal no sentido da auto-educação ou de uma educação entre pares carece do selo de garantia que só os diplomas são capazes de fornecer. Concluir a escolaridade por que meios for passa a ser sinônimo de competência, o que, pelo avesso, desqualifica os que não têm diplomas. Illich investiu na criação de instituições educativas diferentes que, dizia, pertenciam a uma sociedade que ainda não existia, mas que essas instituições ajudariam a criar.
As “redes de saber” que propunha deveriam dar acesso aos recursos existentes a todos que quisessem aprender em qualquer época da vida; permitir que os que desejavam partilhar seus conhecimentos o fizessem, encontrando quem quisesse partilhá-los ou trocá-los por outros conhecimentos; os portadores de idéias novas deveriam poder se fazer ouvir. Illich escreveu antes da internet, mas quem hoje troca conhecimentos na rede tem um parentesco certo com essas idéias que, na época, eram acusadas de utópicas e sem apoio na realidade. Mas a realidade foi ao encontro de suas idéias, como acontece com todos os pioneiros.
No debate sobre meio ambiente, a humanidade, confrontada com o xeque-mate da limitação de recursos naturais, descobriu que o problema não é escassez, mas o desperdício, o modelo de civilização que ele tanto criticava: o crescimento ilimitado, o consumo demencial de energia, a criação incessante de novas necessidades. Esbanjamento que desequilibra o acesso à energia entre ricos e pobres, reproduzindo no consumo de bens naturais a desigualdade de sempre que marca a relação entre os países desenvolvidos e o resto do mundo.

Frenético, insaciável, destituído de sentido outro que a acumulação de bens, esse modelo de civilização adoece o planeta, esgotado, como esgota os nervos de cada um. As pessoas doentes voltam-se, então, para mais uma instituição, a que distribui saúde, como a escola distribui educação. O hospital, a medicina, são os novos alvos de um pensamento ferino, rigorosamente coerente: é preciso devolver aos indivíduos a capacidade criativa de que foram expropriados, permitindo-lhes educar-se no convívio e na experiência, cuidar da sua própria saúde, vivendo uma vida física e mentalmente saudável, encontrando sentido na existência.
A grande descoberta de Ivan Illich foi a natureza tragicômica de um modelo de desenvolvimento empenhado em resolver problemas que ele mesmo cria. No início deste ano, a Unesco convocou um encontro com título instigante: “Desfazer o desenvolvimento, refazer o mundo.” Lá estava Illich, o pioneiro Illich, que acaba, este mês, de cumprir o seu destino. “Tentei viver como um peregrino, um passo depois do outro, adentrando meu tempo, vivendo no meu horizonte, que espero alcançar com o passo, o surpreendente passo que darei ao morrer."

Por: Rosiska Darcy ( do Centro de Liderança da Mulher).

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Para que serve o professor?

Ao ler a respeito de casos de violências nas escolas, deparei-me com
uma esfera da violência que não definiria precisamente como o máximo da
impertinência... porém, sem dúvida, de uma impertinência muito significativa.
Era o relato de um estudante que, para provocar seu professor, lhe disse:
---“ Desculpe-me, mas, na época da internet... você professor.... para que
serve ?

O estudante disse uma meia verdade que , mesmo entre os próprios
professores, é dita há pelo menos vinte anos, qual seja a de que antigamente a
escola transmitia formação e também conteúdos, desde a tabuada nas séries
iniciais, qual é a capital da Espanha nas séries seguintes até os fatos da guerra
dos trinta anos no ensino médio. Com o surgimento, não apenas da internet,
mas da televisão, do rádio, assim como do cinema, grande parte destes
conteúdos começaram a ser absorvidas pelas crianças na esfera extra-escolar.

Quando era pequeno, meu pai não sabia que Hiroshima ficava no Japão,
que Guadalcanal existia, tinha uma idéia muito imprecisa de Dresde e somente
sabia da Índia o que havia lido am Salgari. Eu, que sou da época da guerra,
aprendi essas coisas pelo rádio, nas notícias diárias, enquanto que meus filhos
viram na televisão os fiordes noruegueses, o deserto de Gobi, como as abelhas
polinizam as flores, como era um tiranossauro rex e, hoje em dia, uma criança
sabe tudo sobre o ozônio, sobre os Coalas, sobre o Iraque e o Afeganistão.

Talvez uma criança de hoje não saiba o que sejam exatamente as células
tronco, mas já ouviu falar disso enquanto que, em minha época, nem mesmo a
professora de ciências naturais sabia algo a este respeito. Então... para que
servem os professores hoje em dia ?

Eu disse que o estudante falava uma meia verdade porque, antes de
tudo, todo docente além de informar, deve formar. O que leva uma turma a ser
uma boa classe não é que sejam transmitidas datas e nomes, mas que se
estabeleça um diálogo constante, um confronto de opiniões, uma discussão
sobre o que se aprende na escola e o que aprende fora dela. É certo que o que
acontece no Iraque é dito pela televisão. Porém, porque isso acontece ali desde
a época da civilização mesopotâmica e não no Alaska, é algo que só pode ser
dito na escola. E se alguém objetasse que, às vezes, também existem pessoas
que aprendem no “ Porta a Porta” ( programa televisivo italiano que discute
temas da atualidade), é a escola que deve discutir o “ Porta a Porta”.

Os meios de comunicação de massa informam sobre muitas coisas e
também transmitem valores, mas a escola deve saber discutir a maneira como
estas informações são transmitidas e avaliar o tom e a força da argumentação
do que aparece em jornais,revistas e televisão. Além disso, a escola deve
verificar a informação veiculada por estes meios. Por exemplo: quem, senão
um professor, pode corrigir a pronúncia errada do inglês que os alunos
acreditam ter aprendido pela televisão ?

Aquele estudante não estava dizendo ao professor que já não
necessitava dele porque agora existem o rádio e a televisão para lhe dizerem
onde fica a Groenlândia ou o que é discutido sobre a fusão a frio. Ou seja, não
estava lhe dizendo que seu papel era questionado por discursos isolados que
circulam de maneira casual e desordenada a cada dia em diversos veículos de
informação - que saibamos muito sobre o Iraque e pouco sobre a Síria,
depende da boa ou má vontade de Bush. O estudante estava dizendo ao
professor que hoje existe internet, a grande mãe de todas as enciclopédias,
onde se pode encontrar a Síria, a fusão a frio, a guerra dos trinta anos e a
discussão infinita sobre o maior dos números ímpares. Estava lhe dizendo que
a informação que a Internet coloca à sua disposição é imensamente maior e
inclusive mais profunda do que aquela de que dispõe o professor. E omitia um
ponto importante: que a Internet lhe dá “ quase tudo”, exceto como pesquisar,
filtrar, selecionar, aceitar ou descartar toda essa informação.

Armazenar uma nova informação quando se tem boa memória, é algo de
que todo mundo é capaz. Porém, decidir o que é que vale ou não a pena
relembrar, é uma arte sutil. Esta é a diferença entre aqueles que cursaram
estudos regulares( mesmo que mal) e os autodidatas( mesmo que geniais).

O mais dramático é que , muitas vezes, nem mesmo o professor sabe
ensinar a arte da seleção. Ao menos, não em cada capítulo do saber. Porém,
pelo menos sabe que deveria sabê-lo e, se não sabe dar instruções precisas a
respeito de como selecionar a informação, pelo menos deve oferecer-se como
exemplo mostrando ao aluno que se esforça por comparar e julgar tudo aquilo
que a Internet coloca à sua disposição. Pode também colocar em cena , em seu
cotidiano, a intenção de reorganizar sistematicamente o que a Internet lhe
transmite em ordem alfabética, dizendo-lhe que existe Tamerlão e
monocotiledoneas sem apresentar a relação sistemática entre estas duas
noções.

O sentido desta relação somente pode ser oferecida pela escola e se
esta não sabe como fazê-lo, terá que equipar-se para tal. Se não, os três Is de
Internet, Inglês e Instrução continuarão sendo somente a primeira parte de um
zurro de asno que não ascende ao céu.
Por Umberto Eco
Tradução do espanhol, por Júlia Eugênia Gonçalves