quinta-feira, 1 de outubro de 2009

" Eu carrego você comigo"...(Poema de E.E. Cummings)




Carrego seu coração comigo

Eu carrego no meu coração

Nunca estou sem ele

Onde quer que vá, você vai comigo

E o que quer que faça

Eu faço por você

Não temo meu destino

Você é meu destino meu doce

Eu não quero o mundo por mais belo que seja

Você é meu mundo, minha verdade.

Eis o grande segredo que ninguém sabe.

Aqui está a raiz da raiz

O broto do broto e o céu do céu

De uma árvore chamada VIDA

Que cresce mais que a alma pode esperar ou a mente pode esconder

E esse é o pródigo que mantém as estrelas á distancia

Eu carrego seu coração comigo

Eu o carrego no meu coração.



(Poema de E.E. Cummings)

" O Lixo" - Luis Fernando Veríssimo

Sou apreciadora das crônicas de Luis Fernando Veríssimo, eu as leio sempre com um sorriso no rosto, mesmo antes de começar. Na verdade já sei que tenho que me preparar para dar umas boas gargalhadas. Costumo acompanhá-las através de algumas idas e vindas pela NET e tenho alguns livros que reúnem diversas crônicas e histórias que satirizam o cotidiano. Julgo que o humor é uma forma sublime de entendimento.
Este texto nos faz refletir sobre o nosso lixo... Principalmente o lixo interior, que insistentemente lidamos no dia a dia, com o nosso e os dos outros. Quanto lixo carregamos sem necessidade, penso eu... Mas ainda há tempo para refletirmos. Então, compartilho com vocês essa crônica.
Texto retirado do livro: "O analista de Bagé".


O Lixo

Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.
- Bom dia...
- Bom dia.
- A senhora é do 610.
- E o senhor do 612
- É.
- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...
- Pois é...
- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
- O meu quê?
- O seu lixo.
- Ah...
- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
- Na verdade sou só eu.
- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.
- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
- Entendo.
- A senhora também...
- Me chame de você.
- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...
- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra...
- A senhora... Você não tem família?
- Tenho, mas não aqui.
- No Espírito Santo.
- Como é que você sabe?
- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
- É. Mamãe escreve todas as semanas.
- Ela é professora?
- Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
- Pois é...
- No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
- É.- Más notícias?
- Meu pai. Morreu.
- Sinto muito.
- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
- Foi por isso que você recomeçou a fumar?
- Como é que você sabe?
- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.
- É verdade. Mas consegui parar outra vez.
- Eu, graças a Deus, nunca fumei.
- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...
- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.
- Você brigou com o namorado, certo?
- Isso você também descobriu no lixo?
- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.
- É, chorei bastante, mas já passou.
- Mas hoje ainda tem uns lencinhos...
- É que eu estou com um pouco de coriza.
- Ah.- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
- Namorada?
- Não.
- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
- Você já está analisando o meu lixo!
- Não posso negar que o seu lixo me interessou.
- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.
- Não! Você viu meus poemas?
- Vi e gostei muito.
- Mas são muito ruins!
- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.
- Se eu soubesse que você ia ler...
- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
- Acho que não. Lixo é domínio público.
- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...
- Ontem, no seu lixo...
- O quê?
- Me enganei, ou eram cascas de camarão?
- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
- Eu adoro camarão.
- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...
- Jantar juntos?
- É.
- Não quero dar trabalho.
- Trabalho nenhum.
- Vai sujar a sua cozinha?
- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
- No seu lixo ou no meu?


Fonte: http://portalliteral.terra.com.br

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

" Enquanto houver um adulto lendo, haverá uma criança para imitá-lo"









Ela ocupa a cadeira de número 1 da Academia Brasileira de Letras, já vendeu 18 milhões de exemplares de seus livros e arrebatou inúmeros prêmios literários nacionais e internacionais. Compartilha o sobrenome com o ilustre Machado de Assis, mas rejeita a comparação simplista – “Maria Clara Machado é mais conhecida das crianças do que ele”.
Aos 68 anos de idade, 40 dos quais como escritora, Ana Maria Machado tornou-se um dos grandes nomes da literatura brasileira, mesmo que, quase sempre, escrevendo para pequenos leitores.

A carreira da escritora de “Bisa Bia, bisa Bel” em um bate-papo na XIV Bienal do Livro Rio com Ruth Rocha, outro ícone da literatura infantil no país que também comemora as suas quatro décadas de trabalho. Após o debate, Ana Maria irá autografar cópias da segunda edição de seu “Palavras, palavrinhas e palavrões”, no estande da editora FTD.

Presença indispensável nas bibliotecas escolares e listas de favoritos de leitores-mirins pelo menos desde a década de 1980, Ana Maria não é lembrada com a mesma intensidade nas páginas de resenhas de jornais e internet quanto poderia, mas tampouco se intimida com isso.

“Em todas as bienais, por exemplo, e grandes feiras de livros, o volume de vendas do setor supera (em muito) as vendas de livros para adultos. As tiragens médias de infantis são sempre mais altas do que as de adultos — e a vida editorial dos livros (seu tempo de permanência nos catálogos das editoras, sendo reimpressos e vendidos ou ganhando novas ilustrações e capas após alguns anos) também. Conseguir esse feito com muito menos espaço na imprensa só confirma o vigor do segmento e sua independência em relação à percepção ‘oficial’ adulta”, defende a escritora.

E, como uma boa professora de português, aproveita para puxar a orelha do jornalista: “O Brasil conhece seus autores de literatura infantil. Quem não os conhece são os chamados ‘formadores de opinião’. Um fenômeno interessante, capaz de fazer pensar no que aconteceria com ‘este país’ se ele fosse ajudado por quem tem poder para incentivá-lo”.

Em tempos de MSN, videogames e TVs a cabo, a escritora não engrossa o coro dos que acham que os livros são pobres-coitadinhos no embate com as novas tecnologias. A briga não é de hoje, lembra. Antes, “havia quintais (com árvore, cachorro etc.), brincadeiras na calçada, turmas de rua, todos a atrair a atenção das crianças”. E completa: “O mundo é mesmo muito atraente, para todas as idades. A literatura faz parte dele, é apenas um de seus encantos. Pode ser que os livros percam a disputa e daqui a pouco desapareçam. Pessoalmente, creio que é até mais provável que isso aconteça antes para os adultos e só depois para as crianças, a julgar pelas tendências do setor. E porque enquanto houver um adulto lendo, será um exemplo para a criança que o ama e o deseja imitar como modelo”.

Vão-se os livros, ficam as palavras.

Há pelo menos duas décadas, depois de abandonar o jornalismo e as aulas em colégios e universidades, Ana Maria vive dos livros – tem mais de 200 publicados, entre histórias infantis e adultas e traduções -, mas reforça que, no caso de um eventual desaparecimento dos impressos em papel, sobrarão certamente as palavras. “Há 2.800 anos, lá na Grécia, quando ainda nem se tinha inventado a escrita, Homero ou outros poetas cantavam e contavam ‘A Ilíada’ e a ‘Odisseia’ ao som da lira em palácios de pedra ou em praças diante de templos de mármore deslumbrantes.
Pouco depois, as tragédias de Sófocles, Ésquilo ou Eurípides eram representadas em anfiteatros ao ar livre, construídos para durar. Hoje, toda essa solidez de pedra se desmanchou e só restam ruínas. Mas as palavras continuaram, ainda que seus suportes fossem frágeis tripas de carneiro num instrumento musical, ou vozes de atores se perdendo no ar. Tenho certeza de que, no fim disso que você chama de ‘a disputa pela atenção’ a palavra tem seu lugar inexpugnável”, profetiza.

É por isso que ela acha “válido” – e não temerosas – iniciativas como as da Floresta de Livros da Bienal do Rio e do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, que usam recursos de áudio, vídeo e computação para tornar a literatura atraente para o público infantil. “As histórias podem ser contadas de várias maneiras. ‘Troia’ pode ser um filme com Brad Pitt. Ou um jogo de videogame. Ou um desfile de escola de samba, como as referências a ela que o Império Serrano fez ao contar a história de Zumbi dos Palmares. São coisas diferentes, ligadas a emoções distintas e produzem formas diversas de transmissão de conhecimentos. Quem se contentar com a mais pobre delas, tem o direito de escolher ficar só com ela. Ninguém precisa lhe enfiar livros pela goela abaixo.”

Fonte: Entrevista da escritora Ana Maria Machado A ruth Rocha na Bienal- " O Globo Notícias".


terça-feira, 29 de setembro de 2009

"Privacidade encarada"- Rosely Sayão




A frase "criança precisa de limites" escorre pela boca de muita gente. Tenha você filhos ou não, conviva com crianças ou viva bem longe delas, certamente já ouviu alguém pronunciá-la com ar de sabedoria ou teve vontade de dizê-la. Espero que tenha se contido porque ela não significa boa coisa. Dita assim, parece que consideramos os limites algo importante para os mais novos, mas que, infelizmente, não tivemos como lhes oferecer.

Pois essa pode ser uma parte da nossa realidade. Consideremos, por exemplo, a fronteira -o limite!- entre o público e o privado, entre o que é da ordem da intimidade e o que pode ser partilhado no convívio social. No mundo adulto, essa fronteira parece ter quase se dissipado e o modo como usamos o telefone celular evidencia isso.

Todo assunto é conversado na presença de qualquer pessoa e o tom de nossa voz não demonstra que queremos deixar nossos assuntos protegidos de estranhos. Brigas com cônjuges, comentários sobre um amigo, nossos percalços financeiros, tudo é tratado no trabalho, no restaurante, no bar. Além disso, não há distinção entre vida profissional e pessoal, já que ambas estão sempre se atravessando: fala-se com os filhos no trabalho, trata-se de trabalho no convívio familiar.

Pois bem: as crianças têm reproduzido muito bem essa falta de limites. Na escola, que é onde começam a aprender a viver a vida pública, consideram amigos os colegas com quem mais têm afinidade -sempre temporária, é bom lembrar. E toda sorte do que consideram segredo de suas vidas compartilham com os mesmos. Fatos que acontecem com os pais, o que pensam e sentem, atos que cometeram, eles contam tudo.

Na primeira oportunidade, arrependem-se fortemente do que fizeram porque os segredos passam a ser usados como moedas de troca para pequenas chantagens, são divulgados em atos de represália, servem de motivo para chacotas etc. Mesmo assim, sozinhas, as crianças não conseguem aprender a distinguir colega de amigo, assunto íntimo de assunto social.

Outra evidência de que não sabem nem conseguem proteger sua intimidade de estranhos é quando usam a internet. Confiam rapidamente nas pessoas com quem conversam, publicam experiências muito pessoais na ingênua crença de que apenas quem eles conhecem e querem bem terão acesso, distribuem comentários que deveriam ser feitos a poucos, escrevem seu diário, expõem-se.

Em geral, quando a criança usa a internet, sente-se segura e protegida porque está em sua casa, e isso ajuda a perder a noção de que um pequeno artefato tecnológico a conecta ao mundo todo. Assim, ela constrói a ilusão de que nada do que escreve ou nenhuma imagem que publica será acessada por quem não gosta ou mesmo para ser usada contra ela. Muitas já sofreram experiências dolorosas e pouco aprenderam. É principalmente por isso que as crianças precisam de tutela adulta quando usam a rede.

Se queremos que os mais novos tenham uma vida melhor do que a nossa, precisamos lhes ensinar que é possível e desejável construir uma intimidade e que amigos temos poucos, enquanto os colegas são muitos.


Fonte: Blog Rosely Sayão

" A Mulher Madura"- Affonso Romano de Sant'Ana


O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos.De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua vez no balcão. Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs.
Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria. A mulher madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem qualquer coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé.Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosamente.
A adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita água para os lados.
Enfim, desborda.A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência.
Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a distância entre seu corpo e o mundo.A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira.
Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem dos dentes e dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito.
A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros corpos. Por isto as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro e abril.
O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.
Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem à mulher pobre, mas vem com tal violência que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma marrom tristeza.
Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior. Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador.
Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que cada um descubra o fulgor do próprio corpo.
A mulher madura está pronta para algo definitivo.Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde acompanhando com o complacente olhar o vôo das andorinhas e as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades.
Por isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta jóias. As jóias brotaram de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem prendas do tempo.A mulher madura é um ser luminoso é repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos gestos.
Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes.Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar.
Fonte: O texto acima foi extraído do livro "A Mulher Madura", Editora Rocco