domingo, 16 de maio de 2010

“ Educar falando de sexo” - Rosely Sayão

"Eu penso muito no Paulo Freire. Uma vez ele me disse: 'Os psicólogos precisam de um bom pretexto pedagógico para conversar com as pessoas.'
Eu achei um, que é o sexo."

   
 


Ao ler seus artigos e assistir às suas palestras, tem-se a impressão de que se desaprendeu a dizer não. Os pais lhe perguntam como dizer não aos desejos dos filhos e as garotas querem saber como dizer não ao namorado quando não se sentem preparadas para iniciar a vida sexual...


Primeiro, quero diferenciar o não dos pais do não das garotas. O não do pai para o filho supõe ele declinar do seu papel de educador. Educar significa saber quando dizer não e quando dizer sim. A gente tem filhos, e eles não nascem educados nem se auto-educam. Eles dependem dos pais. A dificuldade dos pais dizerem não se deve, eu acho, ao fato de a vida dos filhos estar muito limitada. Não há mais infância, tempo ocioso, possibilidade de brincar, de ter prazer. As crianças hoje têm agenda: ir para a escola, para o inglês, depois para a natação. Então, os limites, que seriam os construtores da educação, causam constrangimento aos pais.

O não da garota, eu acho que tem a ver com a história da submissão, da relação de poder entre os gêneros. Elas não sabem disso, mas arcam com esse preço. É por isso que eu acho tão importante a educação sexual na escola. A escola é o espaço onde os profissionais deveriam estar preparados para discutir isso. As mães dessas garotas também não sabem disso, portanto não têm a chance de discutir. Não precisa ser aula de educação sexual. Na aula de história, ou com um texto de literatura, pode-se discutir isso.

Você acredita que os pais estão declinando de seu papel de educadores. Como você vê essa confusão que há na cabeça de pais e professores a respeito da divisão de responsabilidades na educação? Um acaba tomando a posição que caberia ao outro...

E ninguém — nem a escola, nem os pais — assume a sua. (risos) Tanto a família quanto a escola devem educar. A família tem que educar para que seu filho aprenda a ser humano. Porque a gente não nasce ser humano, a gente nasce filhote. O que significa ser humano? Significa perceber que existem relações familiares, que existe respeito, que há afeto envolvido — o que supõe amor e ódio —, que existem expectativas. Ensinar as tradições, os princípios, a moral dessa família, isso é ensinar a ser humano. Agora, os pais não têm como ensinar os filhos a se comportar em um espaço público. Isso é dever e obrigação da escola. É só na escola que a criança tem condições de aprender, democraticamente, a viver no espaço público. Então, a escola que chama os pais para dizer que lá seu filho não tem limites é uma escola incompetente.

Além da relação família/escola, dá para perceber que outra divisão de responsabilidades é cada vez mais cobrada. Há a cobrança do garoto para que a garota também traga camisinha e o engravidar no plural, pois não é a garota que engravida, é o casal.

É, as pesquisas sobre gravidez precoce sempre são publicadas no feminino... Mas é o homem que determina os rumos da vida sexual, não é o casal. Até a anatomia ajuda um pouco. Se o homem não tem ereção, não tem transa. Para a mulher, basta abrir as pernas. E eles acham que isso tem uma justificativa da natureza, e não tem! Mas é difícil, para a mulher, até por conta da educação que ela recebe, assumir a sua parcela de responsabilidade. Ela prefere ir no rumo que o homem aponta, e isso significa não se cuidar, não ter a sua camisinha.

Outra pergunta que lhe fazem é: como conter o desejo sexual? Há uma constatação de que o sexo anda banalizado... O fato de que os jovens ultrapassaram os limites e de que alguma coisa deve ser feita manifesta-se até no plano legal, quando se cogita baixar a maioridade penal... Você acha que falta diálogo para dividir as responsabilidades e preservar os limites?

Não é falta de diálogo. Quer dizer, depende da idade. Acho que é falta de educação mesmo. Se tem uma coisa que me irrita profundamente é entrar num restaurante, num domingo, e esperar por uma mesa, esperar para ser servida e esperar pela conta. O almoço dura três horas! Eu vejo as famílias com crianças pequenas, que não conseguem suportar aquilo. E o que acontece? Elas começam a subir, a derrubar, tudo que é natural que elas façam. Aí os pais dizem: "Filho, não faça isso, não faça aquilo." Não é assim que se contém o comportamento. É falar e trazer para o colo, segurar. Não tem outro jeito. Agora eles esperam que os filhos ajam como adultos, ou seja, escutem e obedeçam. E depois os moleques não conseguem segurar o tesão. É porque não aprenderam...

É o mesmo que acontece quando se manda as crianças dormir...

Exato!

Um de seus artigos recentes trata justamente dessa repressão, desse conter. Esse é um problema também dos professores, de todo mundo...

Outro dia eu estava em uma reunião só de professores. Uma professora disse que tinha um aluno que tirava a roupa, ficava pelado, se masturbava. Eu perguntei se ela já tinha conversado com ele, se já tinha discutido sobre as regras. Ela falou que já, e eu perguntei que idade ele tinha: três! (risos) Ele está fazendo tudo que tem direito. Eu digo sempre que os encontros que tenho com alunos é uma brincadeira. Daqui a três, quatro dias, eles já esqueceram tudo que a gente conversou. A parte séria começa quando eu vou falar com quem realmente educa esses jovens. Educar é um processo, acontece diariamente, e não num encontro uma vez por ano. Os filhos chegam à noite e querem pais, e os pais querem paz. Não pode.

E o fato de os pais não aprenderem a controlar...

Os pais não ensinam. Mas eles aprenderam na marra, no autoritarismo...

Enfim, a falta de controle pode gerar conseqüências sérias na vida do jovem: uma gravidez precoce, uma DST. O curioso é que muitas das perguntas deles são sobre o depois, sobre como remediar, sobre a pílula do dia seguinte. Além disso, fazem muitas perguntas sobre aborto...

Deixe-me aproveitar para falar sobre isso antes que eu me esqueça. A obrigação do adolescente é pensar no presente. A obrigação dos educadores é pensar no futuro, preparar e acompanhar o educando. Só que os educadores não estão pensando no futuro. É por isso que o adolescente pensa sempre no pós, depois que já aconteceu. O futuro não faz parte da vida deles. Eles não conjugam o verbo em três tempos, só no presente.

Ao se constatar isso, que eles só conjugam o verbo no presente, será que não é o caso de se repensar certas coisas? Os postos de saúde, as escolas, talvez, não deveriam distribuir preservativos, como acontece em alguns países?

Eu prefiro apostar na prevenção. Se a gente começa a distribuir camisinhas, pílulas, a gente está estimulando a prática não-consciente, irresponsável. A gente tem que apostar na autonomia, na liberdade de escolha. Porque, se tiverem isso, vão achar a camisinha em algum lugar e, se não acharem, não vão transar.

É verdade, mas a prática de muitos países consiste em facilitar ao máximo a obtenção da camisinha, de uma forma que não existe no Brasil, como vender no metrô, na casa noturna, na rua, onde o jovem está. Não só na farmácia, aonde ele tem que ir... Você, que convive com isso há muito tempo, acha que essa mentalidade de tornar a camisinha um produto do cotidiano, do dia-a-dia, está avançando no Brasil?

Ainda não. Eu participei do lançamento aqui no Brasil da máquina de vender camisinha. Foi lançada em boates, em bancas de revistas, lugar só de moçada. Em menos de três meses, as máquinas estavam destruídas. A mesma moçada destruiu. Não adianta a gente distribuir preservativo se a gente não apostar na educação. Eu acho que a gente está um passo atrás na educação. Se a gente conseguir superar esse passo, que é o mais difícil, aí disponibilizar camisinha é muito fácil, muito fácil. O governo pode fazer isso que é uma beleza. Todo carnaval ele distribui milhões de camisinhas. Só que não adianta, o pessoal não usa.

Isto é chocante: você cita uma garota que estuda em uma escola particular, em um grande centro urbano, que tem concepções totalmente erradas, que diz que o coito interrompido basta...

Não tem a ver com a informação, com o conhecimento. Tem a ver com a maturidade. Uma coisa é você saber, outra coisa é saber usar a informação com sabedoria. E a diferença entre uma e outra é a formação, é a responsabilidade.

A mídia faz algo semelhante: dá informação, mas não educa...

Ela não tem a obrigação de educar. Mas ela está num contexto sociocultural e tem obrigação de contextualizar o sexo. Quando especialistas da minha área — médicos, psicólogos — vão à mídia e um adolescente diz que transa com a irmã, eles falam: "Olha, converse com fulano de tal, você está com um problema psicológico." Que é isso?! E a questão social não é tratada?

Mas, então, como deixar esse papel de só informar, de só passar informação, que é um papel que as escolas também assumem?

Contextualizando as questões. O adolescente descobre a sexualidade por impulso interno, por tesão. Agora, tem que perceber que a sexualidade dele não depende apenas do indivíduo, que está dentro de um contexto social, cultural, de época, de região. Cabe à escola discutir essas questões. À família cabe dizer: "Você só vai transar depois do casamento, isso é o certo." Ela tem obrigação de fazer isso, ou seja, de ensinar aquilo em que acredita. E a escola tem que confrontar o filho com seu pai. Olha, tem famílias que pensam assim, tem famílias que pensam de outro jeito. Tem que trazer os parâmetros da moral e ajudar os alunos a tomar suas próprias decisões. Mas a escola tem medo de fazer isso, não é? Tem medo dos pais não gostarem. Então, a escola está também declinando do seu lugar.

Isto é algo que você procura fazer: confrontar todas as informações para não dar a sua opinião pessoal. Não seria isso que o professor teme?

É, o professor não é preparado, mas o professor está numa escola que tem o seu projeto pedagógico, que tem uma filosofia. O que eles temem é assumir essa responsabilidade.

Pois é, mas é um dos temas transversais...

Pergunta aqui na escola quem leu. É um dos melhores textos que eu já li.

Isso de a escola tomar uma posição que desagrada aos pais também ocorre porque os pais tendem a defender demais o filho, a não reconhecer quando ele está sem razão. Assim, o filho não arca com o que faz. Você diz que essa pode ser uma explicação para tanta gravidez precoce no Brasil. Esses adolescentes não pensam nas conseqüências, sabem que o pai vai bancar...

A gente percebe que isso tudo é decorrência do desequilíbrio na relação família/escola. A escola deveria tratar disso como parte do processo de ensinar o filho a se tornar cidadão. Então o pai vai dizer: "Você falou de sexo?" E a escola deveria responder: "Falei. Por que você não vem questionar a geometria que eu estou ensinando?" Isso tem que ser uma coisa normal. A escola é a grande chance de ensinar a garotada, porque em casa ela tem que ser moralizada mesmo.

E, nesse caso, como fica o diálogo com os pais sobre sexo? Você desestimula esse diálogo?

Eu não desestimulo a falar sobre sexo. Eu desestimulo a falar sobre a vida sexual, sobre a vida privada. É diferente. Se a gente andar, sei lá, um quilômetro, a gente vai achar um monte de coisas que permitem falar sobre sexo. Um outdoor mais erótico, uma capa da Playboy na banca. Os pais podem falar sobre isso, sobre a novela. Ah! Eu acho isso, eu acho aquilo. Idéias, opiniões, pensamentos, princípios, isso eu estimulo.

Quando você recomenda evitar falar da vida privada, supõe que os adolescentes tenham autonomia sobre sua vida sexual. Mas eles parecem um pouco perdidos, pois fazem muitas perguntas sobre a idade ideal para começar a vida sexual, não é? Eles se sentem pressionados a fazer o que seus colegas já fizeram e acabam ficando meio inseguros...

Os pais não percebem, mas eles ajudam nessa pressão também. As escolas também fazem parte disso sem perceber. Quantas vezes eu entro numa escola e vejo a criançada da educação infantil fazendo uma apresentaçãozinha com o disco do Tchan. A escola está autorizando essa precocidade, está abortando a infância. Outro dia eu fui dar uma palestra numa escola e, por puro acaso, era Dia dos Namorados. A criançada estava saindo e vi um aluno do pré com um presentinho na mão. Eles não consideravam isso um problema. Eu cheguei para os professores e disse: "Se, aos dez anos, alguém engravidar, vocês vão achar que não têm nada com isso."

Um artigo publicado em nosso portal chama-se Ivo nem Viu a Uva e já Segura o Tchan... (risos)

 Essas crianças que a gente vê nas ruas... Eu vejo meninas vestidas de mulheres. Se a menina engravida, a mãe vai ficar horrorizada. Outra coisa que a escola não pensa: ela começa a tratar do aparelho reprodutor na terceira série. Depois, não quer que as meninas engravidem. Claro que engravidam. É assim que se aprende. Não tem que ensinar o aparelho reprodutor na terceira série. Nessa fase, as crianças têm questões que, se não forem respondidas adequadamente, podem se transformar em angústia. Eu tenho até uma piada sobre isso:

"O Joãozinho ouviu na escola uma história muito estranha do que era trepar. Chegou em casa disposto a tirar isso a limpo. Então perguntou:

— Vó, como é que eu nasci?

— A cegonha que trouxe.

Ele pensou mais um pouco e disse:

— Vô, como é que eu nasci?

— Ah! Seu pai e sua mãe encomendaram você ao Menino Jesus como presente.

Ele falou pro pai, pra mãe, e cada um veio com uma história. Aí ele disse:

— Mas ninguém trepa nessa casa?" (risos)

A gente acha que a criança é muito inocente. Ela não é, ela precisa de trabalho com respeito. Aí eu tenho uma segunda piada:

"O outro Joãozinho vai pra escola, volta e, na hora do jantar, fala assim:

— Ô mãe, de onde eu vim?

A mãe olha para o pai e diz:

— Ih! Chegou a hora.

Eles começam a explicação, da sementinha, do ovinho. Aí o Joãozinho fica louco para falar. E o pai:

— Calma, depois que a gente explicar tudo, aí você pergunta o que você quiser.

Depois que eles terminaram a explicação, o Joãozinho falou:

— Pai, isso eu já sei faz tempo. Não era isso que eu queria saber. É que na minha escola tem gente que veio de Jundiaí, de Santos. E eu? De onde eu vim?" (risos)

Esta é a questão do adulto com a criança: ouvir o que ela quer saber. Nenhuma resposta vai se tornar algo precoce se a gente ouvir o que ela pergunta.

Neil Postman, que fez um estudo da história da infância, diz que, na Idade Média, as famílias viviam em um só cômodo. Então, as crianças sabiam de tudo desde cedo, sexo inclusive. Ele crê que atualmente o que coloca as crianças em pé de igualdade com os adultos em termos de informação é a tevê. Você parece se questionar sobre sua responsabilidade diante dessa precocidade, pois foi uma das primeiras pessoas a falar sobre sexo com adolescentes.

É, eu fico preocupada. (risos) As pessoas pensam que eu sou sexóloga. Não sou. Na verdade, o sexo, para mim, é um pretexto pedagógico. Eu penso muito no Paulo Freire. Uma vez ele me disse: "Os psicólogos precisam de um bom pretexto pedagógico para conversar com as pessoas." Eu achei um, que é o sexo. Eu não falo de sexo, eu uso esse tema para educar. Eu comecei em 89, no jornal Notícias Populares, no qual continuo até hoje. Aí no Folhateen, a coisa pegou fogo. Eu criei uma linguagem. A Marta [Suplicy] falava pênis, vagina, na televisão. Mas eu quis ir mais longe. Quis aprender a linguagem deles, mas mantendo minha posição de profissional e adulta. Eu vejo um monte de profissionais falando que "tá tudo bem" por aí. Eu fiquei assustada porque eles copiaram um estilo de comunicação, mas não entenderam minha proposta.

Você mantém a seriedade...

Da minha postura, não abro mão. Justamente por isso que não vejo problema nenhum em falar sobre o que o adolescente quiser. Às vezes eles vêm com piadinhas, mas eu procuro achar uma moral na história. Mas tem um pessoal que parou no primeiro momento, no da linguagem. Os programas que tenho visto viraram um "auê" danado. Aliás, se você prestar atenção no pronto-socorro do meu site, vai ver que tem muita gente que não está com cabeça para fazer o que está fazendo. Então é melhor parar. Eu recebo muitas críticas de adultos dizendo: "Nossa, você é moralista." Mas o adolescente está pedindo isso. Ele me manda uma pergunta pedindo orientação.

Como quando as adolescentes lhe escrevem perguntando se sexo é amor, não é?

Elas aprendem isso, coitadas. Os pais acham que, dizendo isso, vão ajudar a controlar um pouco, vão fazê-la esperar "o homem da sua vida". Mas a adolescente se apaixona de manhã por um e de tarde por outro. E é um amor intenso.

Mas há (ou estaria faltando) espaço para se falar de amor nos cursos de educação sexual ou na mídia que se propõe a dar orientação sexual?

Amor não se discute. Amar se aprende sendo amado e não ouvindo falar de amor. Se os pais se relacionam com os filhos com amor, se a escola tem respeito por esse sentimento, a escolha é deles. Não tem jeito de falar do amor, a não ser usando a filosofia ou nossa experiência pessoal. O que é amor para você? O que é amor para mim? São coisas completamente distintas.

Mas como fugir desse discurso da mídia que vê a sexualidade apenas como genitalidade?

Sexo não é genitalidade. Isso é um produto vendido pela mídia que a gente está comprando sem perceber. Agora, amor não entra na história. Não tem como você ensinar uma pessoa a ter afeto. Não tem que falar de amor, tem que amar. Aí a pessoa vai valorizar esse sentimento. Por isso, eu não acho que a mídia seja a vilã. Mais perniciosa que a presença da televisão é a ausência dos pais.

Você acha que adianta alguma coisa anunciar para que faixa etária os programas são adequados?

Eu adoraria ter uma solução. Eu ainda não sei qual é, mas acho que essa proposta já é um passo. Não existem filmes proibidos para menores de 18 anos? Então em casa também deve ter horário para assistir aos programas.


 

Fonte: http://www.educacional.com.br/entrevistas/

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