segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A " progressão continuada" da miopia dos políticos sobre a Educação






No debate entre os candidatos à presidência da república, na rede Bandeirantes, a candidata Dilma Roussef disse que pretende acabar com a progressão continuada no ensino fundamental, e no debate subsequente, entre os candidatos ao governo de São Paulo, os candidatos Aloizio Mercadante e Paulo Skaf prometeram a mesma coisa. Este ponto de vista, vindo de candidatos “desenvolvimentistas”, ligados ainda à era industrial, onde as pessoas eram educadas para serem massa de manobra, não chega a causar espanto. O mais surpreendente foi o fato dos demais candidatos não se terem posicionado contra. Isso levanta a suspeita de que nenhum deles, nem suas assessorias, compreende realmente porque a educação pública no Brasil vai tão mal.

A Progressão Continuada foi criada para substituir uma concepção de avaliação escolar punitiva e excludente, por uma concepção comprometida com o progresso da aprendizagem e o desenvolvimento humano. O sistema antigo, com a possibilidade de reprovação anual, era nefasto para a educação sob vários aspectos.

Em primeiro lugar, durante o ensino fundamental, as crianças estão num período intenso de seu desenvolvimento humano, e, para cada idade, há práticas pedagógicas mais adequadas para estimular o aprendizado em sala de aula. Assim, quando há alunos de várias idades numa mesma classe, prejudica-se esse trabalho, e todos perdem, alunos e professor. Como isso é um fato reconhecido na prática, o que acabava acontecendo em nossas escolas estaduais, é que eram formadas classes só com os alunos mais “difíceis”. Aí, pelo sistema de dotação de classes por pontuação, estes alunos acabavam sobrando para os professores com menor experiência. Aliás, isso ainda ocorre hoje com os alunos retidos em cada ciclo do fundamental.

Chegamos assim ao segundo ponto negativo da retenção anual: a discriminação. O aluno retido sente-se rejeitado, estigmatizado, com sérias consequências para sua auto-estima. E, além de ser excluído do processo de socialização com outras crianças de sua idade, há um forte desestímulo por ele ter de passar de novo pelos mesmos conteúdos, numa escola que, salvo raras exceções, não tem uma prática pedagógica estimulante. O aluno que tiver sucessivas e desestimulantes retenções no percurso escolar vai aumentar as estatísticas da evasão escolar e acaba buscando outros meios de inserção social, através de gangues, drogas e criminalidade. Este processo é totalmente contrário a um dos princípios mais caros aos verdadeiros educadores: A educação precisa proporcionar oportunidades iguais de desenvolvimento humano a todos os indivíduos. Todo cidadão deve ter direito a uma educação básica completa, independente de classe social, religião, gênero e raça, e ninguém deve ser excluído desse direito devido a ser, aparentemente, menos capaz de aprender.

O terceiro ponto negativo, e não menos grave, é que a possibilidade de reprovação incute nos alunos o medo de errar, como se errar fosse a pior coisa que pode acontecer. Este medo vai, com o tempo, matando a criatividade e o protagonismo destas crianças, que chegarão à idade adulta sem a capacidade de ter ideias originais. Nós não sabemos como será o mundo onde nossas crianças vão viver, e quais os desafios que terão de enfrentar, mas tudo indica que a sustentabilidade planetária vai depender da instituição de uma economia muito mais criativa. Assim, a criatividade precisa ser tratada com a mesma importância que a alfabetização.

A progressão continuada não é, portanto, o vilão. O que falta, em primeiro lugar, é a “progressão continuada” do professor. Explico:

Embora a formação em Pedagogia, teoricamente, prepare o professor para lecionar em qualquer ano do ensino infantil ou fundamental de 1º ao 5º ano, ele normalmente se especializa no conteúdo relativo a um único ano escolar, e a cada ano pega uma nova turma de alunos para ensinar o mesmo conteúdo. Seu foco é com o conteúdo, e não com os alunos. Este é um paradigma tão cristalizado, que ninguém ousa imaginar que possa haver outro modelo de relação entre professor e aluno. Desta forma, o professor não se compromete com o desenvolvimento e o sucesso futuro dos alunos. Se a criança tem dificuldades, é cômodo transferir a culpa para a família ou para o professor anterior, e ela será problema do próximo professor. Também é fato que, para se manter com um baixo salário, é comum o professor assumir uma carga horária muito alta, trabalhando em vários períodos, o que inviabiliza um envolvimento mais profundo com seus alunos. Nossas políticas públicas não estimulam o comprometimento do professor com o desenvolvimento individual dos alunos por longo prazo, nem uma aproximação efetiva do professor com as famílias, e, no fim, ninguém é responsabilizado pelo fracasso de um aluno.

Deveríamos então criar um novo nível profissional: o Professor Formador, que poderia ser, inicialmente, um nível optativo. Este professor assumiria seus alunos no 1º ano do ensino fundamental, e os conduziria até o 5º ano, ministrando as matérias básicas do currículo. Outras matérias como educação física, língua estrangeira, artes etc, poderiam ser ministradas por outros professores. Assim, este professor teria condições de conhecer a fundo cada aluno, seu temperamento, suas qualidades e dificuldades, e sua família, para poder atuar da melhor maneira com cada um. Desta forma, o aluno que tiver algum tipo de dificuldade, terá de ser acompanhado de perto pelo professor. Caso este não tenha condições de atendê-lo sozinho, deverá socializar o problema com a equipe escolar, buscar ajuda com a família, ou apoio especializado, se for o caso (psicólogos, fonoaudiólogos, conselho tutelar etc). Ele teria então a responsabilidade de que, no 5º ano, a formação de seus alunos tenha atingido os níveis adequados. Hoje, nenhum professor tem esta responsabilidade, só o aluno. Assumindo perante os pais o compromisso de conduzir seus filhos por uma etapa importante de sua formação, o professor renovaria seu papel social. E, claro, este professor formador precisaria ser bem preparado e ter remuneração adequada para poder dedicar-se a apenas uma turma de alunos.

Este seria o primeiro passo para termos uma educação comprometida com o desenvolvimento humano, focada no indivíduo, e não apenas no ensino de algumas matérias. Afinal de contas, tudo que nossa civilização criou até hoje foi, em última instância, fruto de realizações individuais. Portanto, deve ser uma missão primordial da educação estimular cada criança a desenvolver seus talentos individuais, e só o professor tem a oportunidade de conhecer o aluno como indivíduo. Isso nem o estado ou as editoras conseguem. Já existem escolas em todo o mundo usando este modelo de relação entre professor e aluno, inclusive no Brasil, em escolas comunitárias e até em algumas escolas públicas.

Outros passos necessários incluem a autonomia pedagógica da escola, intensificação do uso das artes como instrumento pedagógico, avaliação integral, reformulação da prática pedagógica e dos currículos para formação dos educadores, entre outros.

Não cabe detalhar todos os aspectos deste modelo de educação no âmbito deste artigo, mas é fundamental que nossos futuros governantes percebam que o mundo mudou, e vai continuar mudando rapidamente. Não basta que os jovens saiam das escolas com prática em passar em provas e vestibulares. Não basta apenas ter conhecimento, pois este está cada vez mais disponível, e sempre pertence ao passado. O futuro depende da sensibilidade, da sociabilidade, da moralidade, da responsabilidade, da solidariedade, do senso estético, e também da vontade de atuar no mundo, com iniciativa, criatividade e coragem, e de outras qualidades intrínsecas ao desenvolvimento humano que as políticas de educação desprezam. E mais, nenhum ser humano deve ser educado para servir a propósitos estatais, ou interesses econômicos. Deve ser educado e desenvolver-se para si mesmo, e de forma que adquira autonomia e capacidade para encontrar propósito e direção para sua vida.



*Rubens Salles é mestre em Educação, Arte e História da Cultura, e pesquisador do Instituto ArteSocial. http://www.institutoartesocial.org.br/ rubens@artesocial.org.br

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