sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Uma carta de amor- Natalícia Alfradique


Minha filha tem várias amigas e uma delas é jornalista. Esta amiga é muito especial, elas se amaram desde o primeiro dia que se conheceram e estudaram juntas desde a alfabetização. Eu sempre a incentivo a escrever a sua história, porque sei que dará um belo livro. Na verdade, temos sempre boas histórias a contar, mas alguns possuem excelentes histórias, mas não conseguem reconhecê-las. Talvez isso se deva a nossa cultura, que nos afirma sempre que gostar de si mesma é uma demonstração de egoísmo e um exagerado ego. Eu diria que não! Mas, infelizmente a escola, assim como as nossas famílias, preferem acreditar nos outros, do que nos seus.

Presenciamos o tempo todo à valorização que damos ao que é importado, não nos incomodamos de como eles nos chegam, de qual o seu destino e que males eles possam nos trazer.

Assim, as histórias desde a minha infância foram construídas. Tudo que era do outro, era melhor do que o meu. Desde os aspectos materiais, até os aspectos intelectuais...

Quantas escolas nos ridicularizavam quando não tínhamos uma pronuncia correta do inglês? Quanto de nós sofria quando não entendíamos a história que nos era contada, afinal era tão distante de nossa realidade que parecia que era uma ficção, que estávamos ali perdendo tempo!

O melhor jeito de se educar é sendo educado. Educado no sentir, no agir e no fazer! E isso nos era arrancado desde cedo, pois escola não é um espaço onde diferentes emoções, sentimentos, discórdias, podiam se digladiar no seu dia a dia.
 Isso era considerado falta de educação. Graças a Deus que a liberdade nos chegou, ainda que tardia, ainda após ter feito muitos estragos e criado a síndrome do neurônico único! A este me refiro a àqueles que ainda acreditam no vestibular, que acreditam que após se concretizar seis anos de faculdade de medicina, você deva fazer mais cinco anos de especialização.
Será se no passado os médicos, tiveram essa mesma oportunidade? Será se eles foram piores médicos do que os de hoje? Ou será se isso tudo não passa de uma crise mercadológica, onde o único objetivo é ter mão de obra barata por mais cinco anos? Afinal, quem pode ficar à disposição em um hospital por 40h, com baixa remuneração e ainda construir uma família? Parece-me que nem todos possam fazer essa escolha sem remorso. Provavelmente terá que abrir mão de algo...

Nesse país as histórias se repetem com freqüência. Os anos demoram a passar muito mais que no hemisfério norte. Às vezes penso que o clima influi. Talvez o frio ajude a ficarmos mais em casa lendo e ouvindo música. Não é à toa, que são eles que estão sempre na frente quando o terreno é estudo e trabalho e para completar sempre nos dizem o que é certo ou errado.

Na verdade, temos tantos talentos como eles. Só nos faltam oportunidades! Se cada professor desse país abraçar e acolher a história de vida de um de seus alunos, tudo muda!

Não existem crianças perdidas, existem histórias perdidas, existem crianças excluídas de afeto, de credibilidade, de perseverança e crença em si mesmas.

Fui dar uma palestra e ouvi a seguinte afirmação de uma coordenadora escolar: - Tem mães que vem para cá, nos entregando os filhos e nos dizendo que eles não prestam para nada. E eu respondi para ela:- E Você acreditou nisso!? Não deixe nunca uma mãe te convencer daquilo que você não vê! Não deixe uma mãe dizer aquilo que ela diz por desespero e você faz dela suas palavras, reforçando assim um ciclo vicioso de abandono intelectual e afetivo.

Nós por medida de proteção, dizemos muitas coisas das quais não acreditamos, mas também insistimos na nossas crenças, dizendo sempre a verdade para os pais como são os seus filhos. E muitas das vezes falamos, agimos e fazemos com que o pai acredite em seu filho, discursando para os pais:- Ame seus filhos e contem a eles a sua história de vida, demonstrando o seu amor por eles!

Mas ainda existe escola que por comodidade, por subverniência concorda com aquilo que lhe é mais fácil tratar, sem se dar conta que está indo contra aos próprios princípios que ela acredita.

Eu duvido que alguém na condição de mãe, gostaria de ouvir de um funcionário de uma escola que o seu filho não serve para nada. E, no entanto, falamos em ações, muitas das vezes sem ao menos perceber que o fazemos. E essa é a lógica que nós criamos e os alunos não entendem, se sentem perdidos, afinal dizemos para eles o tempo todo:- Você é bom nisso e péssimo naquilo e vice-versa. Assim, em que devo acreditar? Na lógica dos adultos ou na visão das crianças que ainda estão se construindo como autores de sua história?

O que nos leva a crer que maçã é melhor do que pêra? Que inglês é mais fácil do que alemão? Quais são as nossas crenças que não tiveram uma única influência do outro?

E eu me pergunto: - E quando eu não sou o outro?

Essa é a grande dúvida. A escola tem muito que aprender. A escola ainda deve perceber que eu não existo se não existisse o outro dentro de mim. Somos muitos e na verdade únicos! Não existe verdade que não tenha passado pela inverdade, pois sem a qual a verdade não existiria.

Criei duas filhas, tão diferentes que os caminhos foram arduamente construídos de formas completamente desiguais, mas nem por isso pior. Apenas diferentes! Criei duas filhas para o sucesso, como sempre me ensinaram, mas não as deixei se consumirem na competição desleal de vencer a qualquer preço. E isso eu chamo dignidade.

O pai de minhas filhas é exemplo de vida para as duas e em nenhum momento eu interferi em suas escolhas. E agradeço a ele por ser essa grande pessoa.

Deus me deu a oportunidade de conhecer e ter belas pessoas ao meu lado. Por isso, tento retribuir sendo uma boa amiga e profissional.
Espero que minha filha, que hoje se formou em medicina, faça de sua trajetória um exemplo de vida e que nunca se esqueça de seus bons exemplos, para que o seu trabalho possa sempre ser fonte de boas referências, pois elas que garantirão o futuro das novas gerações.


Se cuide filha e enfrente tudo com o coração e muita dignidade.

Beijos de sua mãe.


Natalícia



2 comentários:

Natália Kleinsorgen disse...

Por tentar me imaginar melhor, quase fiz escolhas que mudariam completamente o rumo da minha história. Escolhas que poderiam ter me transformado em alguém que eu não gostaria de ser. A Júlia costumava dizer que eu deveria estar cursando junto com ela a faculdade de medicina. Minha mãe às vezes diz que 'ainda dá tempo'. Mas não é por aí. Com 23 anos, pais médicos, primos médicos, melhor amiga formada em medicina, posso dizer, sem medo, que fiz a escolha ideal para a minha vida. Hoje a Júlia diz que eu cursei junto com ela a faculdade. Sempre nostálgica, conversa sobre os tempos que eu queria ser 'médica quando crescer', e mantém o tom de saudade, agora consciente de que estou no caminho certo.
Esta carta de amor é sobre o que é bonito, sobre o que vale a pena, sobre a vida, sobre as escolhas e sobre tudo que é amável. Adorei lê-la e me sentir, ainda mais, parte da sua vida e da vida da Ju. Nossa amizade está completando vinte anos e nossa história ainda está começando. Ainda escrevo um livro.

Beijos, Natinha. Bom te ler.

Anônimo disse...

mami, me manda vir aqui pra me fazer chorar neh!!! Obrigada pelas palavras lindas... mas muito obrigada mesmo por esses 23 anos de mãe... são eles os mais importantes, todos eles... vc sempre esteve e sempre estará no meu coração, na minha mente e na minha vida!! Me orgulho de poder ler vc, como diz a Natuda!
TE AMO p/ sempre!
julia alfradique