terça-feira, 2 de novembro de 2010

ENTREVISTA / Leonel Narváez

Na maioria das escolas ao redor do mundo, as crianças aprendem a somar e a subtrair; a ler e a escrever; a competir e sobressair, mas não aprendem a amar, a perdoar ou a ter compaixão pelos demais.


Para o padre colombiano Leonel Narváez, este analfabeto funcional em que se converteu o ser humano é, em grande medida, o responsável pelos ciclos de ressentimento e violência em que vivem imersas diversas sociedades. Narváez é um dos criadores da Fundação para a Reconciliação, cuja sede fica em Bogotá.

Através de sua experiência com comunidades colombianas, quenianas e de outras latitudes, e com a ajuda de especialistas interdisciplinares das universidades de Wisconsin, Harvard e Cambridge, o teólogo e sociólogo criou as Escolas do Perdão, hoje espalhadas pelo mundo e ganhadoras do Prêmio da Paz da Unesco.

Em outubro será realizado o encontro internacional das Escolas do Perdão, em um antigo forte militar na cidade de Niterói, no Rio de Janeiro. Ali, onde ainda permanecem canhões de guerra, 150 pessoas se reunirão para compartilhar suas experiências na pedagogia da compaixão, que busca solucionar o problema do analfabetismo emocional que, segundo Narváez, é uma das principais causas da violência no mundo. Como preâmbulo do encontro, o teólogo falou sobre reconciliação ao Comunidade Segura.

Como nasceram as Escolas do Perdão?

Trabalhei durante 10 anos em Caguán – zona de influência do grupo guerrilheiro Farc ao sul da Colômbia – e lá desenvolvi a experiência dos territórios de paz com a guerrilha e as comunidades. Íamos a uma localidade, nos reuníamos com as pessoas, fazíamos um sancocho de olla (passeio rural para cozinhar em uma panela enorme uma sopa tradicional camponesa à beira do rio) e resolvíamos amigavelmente os problemas. Fazíamos pactos e declarávamos a localidade um território de paz.

Como funcionam as Escolas do Perdão?

Depois desta experiência prática e da elaboração teórica em Harvard, onde fiz o doutorado, Antanas Mockus nos chamou para aplicar o que sabíamos em 60 bairros de Bogotá. A Escola do Perdão é um treinamento por que passam as pessoas ao longo de 80 horas divididas em 10 sessões.

Cada pessoa chega com um episódio em sua vida que quer perdoar. Supõe-se que, ao fim desse treinamento, devem ter a capacidade de perdoar. Eles recebem um diploma que tem o objetivo de os relembrar que são multiplicadores do perdão e da reconciliação.

Onde estão localizadas hoje as Escolas do Perdão?

Em muitos lugares do mundo: Canadá, Estados Unidos, México, República Dominicana, Venezuela, Peru, Equador, Bolívia, Chile, Uruguai, Serra Leoa, Libéria, África do Sul, Espanha, Itália, Israel e Brasil. No Brasil temos Escolas do Perdão em Minas Gerais, Bahia e Rio de Janeiro. Inclusive, estamos trabalhando um curso acadêmico com a Universidade de São Paulo e com a PUC do Rio.

Em que consiste esse curso?

Ensinamos a manejar a memória ingrata, ou seja, a memória que leva a vítima de volta ao momento da ofensa, alimentando seu rancor, ressentimento e desejo de vingança. Ensinamos como anular esses sentimentos. Por exemplo, no caso de um cônjuge infiel. Durante as 10 sessões trabalhamos o caso e, no fim, a pessoa deve ter ferramentas para superar o ressentimento. É como uma terapia de grupo, pois desde o início a pessoa escolhe alguns companheiros e formam um grupo fazendo um pacto de total confidencialidade.

O perdão implica em reconciliação?

A ideia é que se chegue a uma reconciliação, mas o perdão nem sempre leva a ela. O que se consegue com o perdão é bloquear o desejo de vingança e a escala social. Essa já é uma grande mudança em termos de violência.

O que o senhor acha do processo que se realizou com os paramilitares na Colômbia?

Existem dois lados. O positivo é que 53 mil pessoas entregaram as armas (de diversos grupos, não só paramilitares). O governo fez um esforço enorme para reintegrar essas pessoas e creio que o fez bastante bem. Por outro lado, penso que as elites do país não se entregaram. A sociedade está rachada e de algum modo pensa que a reintegração é só para os "de baixo".

O tema da reintegração deve ter implicações políticas importantes. Ainda existe muita raiva entre os líderes políticos e isto pode ser perigoso porque gera outro tipo de exércitos subversivos. Isto foi o que aconteceu com as Farc e os paramilitares: nasceram com o desejo de organizar-se para a vingança. Então, esse exercício de reconciliação na base também tem que ser feito em cima.

A Colombia está preparada para um grande perdão nacional?

Eu acredito que a violência na Colômbia não se deve tanto à exclusão como aos rancores acumulados ao longo de décadas e que não pudemos superar. Nós temos uma idéia de como trabalhar isso: ter centros de reconciliação em todos os bairros - assim como existem postos de saúde. Um lugar em que as pessoas possam superar esta cultura de vingança e levar isto da base para a elite, pois o perdão tem que tomar dimensões políticas. Nas palavras da escritora Ana Arndt, "o perdão não é um recurso religioso, mas uma atitude política.

E isto vale para todas as culturas?

O perdão é uma necessidade universal. No entanto, falar de pedagogia do perdão tem uma desvantagem em certos ambientes pois é vista como uma proposta cristã. Mas tratamos disso na pedagogia do auto-cuidado, é muito bem recebido em ambientes culturais não cristãos. Resumindo, estamos falando de saúde emocional e de reconciliação.

É correto, então, dizer que os humanos temos a capacidade heróica de perdoar o imperdoável.

Sim, e comprovamos isso todos os dias em nosso trabalho com vítimas da violência. Elas entendem o que é perdoar e são capazes de fazê-lo. Mas perdoar não é esquecer nem impedir o trabalho da lei. É um exercício pessoal de destilar o veneno. Ao entender que ao reciclar venenos estamos causando danos a nós mesmos, o ato de perdoar se converte em um exercício de saúde pessoal.

E como é possível perdoar sem esquecer?

Um dos temas mais difíceis do perdão é o manejo da memória. A mente vive constantemente recordando. Para mudar isso, é necessário fazer um retreinamento cognitivo. É trágico quando uma pessoa não perdoa porque está amarrada ao que ocorreu, escrava do passado. Por isso, o Nobel da Paz, Desmond Tutu, dizia que "sem perdão não há futuro".

É o que pode acontecer, por exemplo, às comunidades africanas ou indígenas. Claro que têm razão em sentir os danos que sofreram e é claro que têm direito à justiça, mas também têm direito a ter um futuro. Para elas, viver no passado é ficar sem futuro.

E como se faz esse processo?

Ajudamos as pessoas a criar novas narrativas, novas linguagens para transformar o que lhes aconteceu através da música, do canto, do conto. É a partir desses exercícios que se transforma o passado. Mas o problema da memória ingrata é que ela nos leva à ofensa sofrida de vez em quando e nos faz sentir o que passamos de maneira repetitiva, gerando o ressentimento. Este em qualquer momento pode se converter em desejo de vingança.

Todo ressentimento leva ao desejo de vingança?

O desejo de vingança é o mais comum nos seres humanos e, quando se passa a executar a vingança, se dá a escalada da violência. Isto pode acontecer com qualquer um. Existe todo tipo de vingança, mesmo as mais sutis. O Banco Mundial, por exemplo, descobriu que um de seus problemas internos é que as pessoas não sabem resolver seus conflitos. Então, há uma cadeia de pequenas vinganças: danificar o documento de outro, não assistir a uma reunião, sabotar a apresentação de alguém.

Isso é inerente ao ser humano ou é algo que se aprende?

Eu defendo que, de algum modo, a sociedade nos condiciona e nos obriga a achar que o ser humano é essencialmente bom. Não podemos negar que existem alguns elementos da natureza humana que podem nos empurrar para a violência, mas tudo depende da formação sócio-emocional que recebemos na família e na escola e esses locais é onde menos se faz educação sócio-emocional. A escola é um caldo onde se cultiva a violência, se ensina às crianças a competir, mas não se ensina sobre a bondade, o afeto e o amor.



Como se dá a passagem e do perdão para a reconciliação?

Enquanto o perdão é algo de uma pessoa consigo mesma, a reconciliação é abrir um caminho até o ofensor. O mais bonito é que a reconciliação começa geralmente pela parte ofendida. O perdão é um presente ao outro, um chamado para a bondade. Quando alguém me ofende, o mais bonito é que quem tem o poder de perdoar sou eu.

O que deve ser feito durante os processos de perdão e reconciliação tanto individuais quanto coletivos?

Deve haver verdade, justiça, pacto e celebração. A verdade não é só do ofendido, que normalmente acredita ser o detentor único da verdade. A verdade é também do ofrensor. Se constrói uma nova versão afirmativa da verdade.

Por outro lado, no caso de um crime de lesa humanidade, por exemplo, acredito que toda a verdade – com os detalhes mais dolorosos, como a forma com que uma pessoa foi torturada – deve ser conhecida apenas pelos juízes. Aos familiares da vítima interessa saber quem cometeu o crime, porque o cometeu e onde está o corpo. Do contrário, se corre o risco de cair em um processo "revitimizador" que faz com que a crueldade do fato aumente o ciclo de raiva e rancor.

E quanto à justiça?

Nós acreditamos na justiça restaurativa e não na justiça punitiva, pois as prisões são escolas de crime. Além de extremamente caras, as penitenciárias são foco de corrupção do Estado e têm pouco sucesso no seu propósito de dissuadir as pessoas a cometer crimes. Existem outros modelos de justiça com melhores resultados como o dos indígenas colombianos, por exemplo. Eles não têm prisões, acreditam na reintegração de seus criminosos.

E qual é a importância do pacto?

É fundamental, pois é o compromisso público de que uma ofensa não vai se repetir.

E a celebração?

É ritualizar esse pacto. O ritual eleva as pessoas a níveis transcedentais e isso deixa mais marcado o compromisso. Por exemplo, o ritual de entrar na igreja com toda a parafernália, dá muito mais solenidade a um casamento do que casar-se em dez minutos em um cartório. É apenas um exemplo para mostrar que o público, o solene, o sagrado compromete mais. E o sucesso desses rituais está demonstrado nos processos com desmobilizados na Colômbia.



ENTREVISTA / Leonel Narváez

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