quinta-feira, 14 de outubro de 2010

" A sombra enorme" - Rubem Alves

Professor José Pacheco- Escola da Ponte                                                      Rubem Alves



Fernando Pessoa- quem diria? – foi ideólogo da Coca-cola... Quem me revelou isso foi o professor Ademar Ferreira dos Santos, educador português, da Escola da Ponte, em Portugal. (Se vocês desejarem em saber um pouco sobre esta escola extraordinária leiam o livrinho A Escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir. Pois ele me contou que nos idos dos anos 20 Fernando Pessoa, precisando ganhar dinheiro para sobreviver passou a trabalhar para uma empresa de propaganda. Coca-cola estava chegando, desconhecida, de gosto estranho, precisava de uma cunha poética que lhe abrisse o cantinho. Foi então que Fernando Pessoa produziu esse curtíssimo slogan: “ A princípio estranha-se. Depois, entranha-se”. Absolutamente genial! Aconteceu comigo.Caipira de Minas mudado para o Rio, acostumado a tomar refresco de pitanga, achei a Coca-cola uma coisa horrível, com gosto de verniz misturado com sabão. Aí, aos poucos, na roda dos colegas cariocas que tomavam Coca-cola com prazer, a metamorfose foi acontecendo. O estranhamento se transformou em entranhamento. E continua, a despeito da minha resistência ideológica. Como disse Barthes, “meu corpo não tem as mesmas idéias que eu”.


Disse tudo isso porque sei que irão estranhar a ideia que vou apresentar. Quando eu a digo pela primeira vez a reação imediata dos meus ouvintes é susto, seguido por riso... “ não é possível que o Rubem esteja falando sério. Essa é mais uma de suas brincadeiras... “ Não, não é brincadeira. Estou falando sério e peço que vocês, meus leitores, se ponham a repetir: “A princípio estranha-se. Depois entranha-se...” Peço que vocês tenham para com minha idéia estranha a mesma atitude que tiveram diante da estranha Coca-cola.

Tudo começou há muitos anos, na INICAMP, quando um grupo de amigos se reuniu para estudar a possibilidade de um vestibular inteligente. Porque esse que existe não é inteligente. Pelo contrário. Minha amiga Vilma Cloris de Carvalho, educadora extraordinária, professora de neuro-anatomia, me revelou que seus piores alunos eram aqueles que tinham obtido as notas mais altas no vestibular. “ Eu explico a complexidade do funcionamento do aparelho nervoso, mostro-lhes o caráter provisório das hipóteses de que dispomos, falo sobre uma, falo sobre outra... E aí, há sempre um desses gênios que tiraram as notas mais altas que se sai com a pergunta: “ Mas professora, qual é a resposta certa?... Ah! Essa simples pergunta contém um mundo de densinos... Nós queríamos um vestibular que fizesse bem à inteligência, que testasse a capacidade dos alunos de pensar, diante de situações novas, em oposição àquele que privilegiava a memória mecânica e as respostas certas. Um dia, num intervalo entre as discussões, o meu amigo professor Yaro Burian Jr., engenheiro do ITA, me disse com um sorriso: “ A melhor solução é o sorteio...” Estranhei. Refuguei. O yaro devia estar gozando. Sorteio, coisa injusta. Vai privilegiar os incompetentes. Ri. Aí ele não explicou nada e só me disse: “ Pense...” Pus-me a pensar e não parei até hoje. Ao estranhamento seguiu-se o entranhamento. Hoje eu repito: “ O sorteio é a solução mais inteligente e mais educativa”. Agora eu preciso explicar o caminho do meu pensamento.

“ Funções manifestas” e “ funções latentes” são conceitos criados pelo sociólogo Robert K. Merton. Esses conceitos ferramentas de pensamento que sempre me ajudam a pensar. Vou explicar o seu sentido ( que é mesmo que dizer “ vou explicar o seu uso”. O sentido de uma idéia é o uso que fazemos dela). Pergunta: “ Qual é a função a exigência de que, para ser aprovado, o aluno tenha que ter freqüentado 75% das aulas? Resposta da função manifesta: “ freqüência a 75% das aulas é condição para se manter a qualidade do ensino”. Resposta da função latente: “ A freqüência a 75% das aulas é condição para que os professores medíocres e incompetentes tenham sempre alunos em suas aulas que de outra forma estariam vazias, livrando-os assim da vergonha...” funções latentes correspondem aos “ efeitos colaterais” das bulas de remédios: função manifesta, curar, função latente, pode matar...

Qual é a função manifesta dos exames vestibulinhos? O nome está dizendo: vestíbulo. Vestíbulo é lugar de entrada. Exames vestibulares: exames para se conseguir entrar no lugar desejado. Mas a minha atenção não se interessa por essa função manifesta. Interessam-me suas funções latentes, seus efeitos colaterais de que poucos se dão conta. Assim, ao falar de exames vestibulares eu não olho para frente, para a universidade. Olho para trás e contemplo o que a sua sombra enorme cobrindo todos os processos escolares que os antecedem. Observo a progressiva instalação dos processos de tortura a que crianças e adolescentes têm de se submeter,que lhes tira toda a alegria da experiência de aprender. Agora já há até “vestibulinhos” para crianças... A deformação começa cedo.



Rubem Alves




Fernando Pessoa

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