sábado, 2 de outubro de 2010

"O que é democracia" ?- Francis Fukuyama

O que é democracia? A ideia de um governo da maioria é frequentemente subvertida para se prestar aos mais variados interesses. Resgatá-la significa, por exemplo, o respeito às minorias, um sistema econômico justo e leis que garantam os direitos humanos.

Em O Fim da História, o pensador norteamericano Francis Fukuyama dizia que, com o colapso do comunismo, a democracia e o capitalismo se firmaram como os grandes vitoriosos entre todos os sistemas e ideologias existentes. Mas democracia é um conceito esquivo, como se tem visto muito recentemente.

O Ato Patriótico, assinado pelo ex-presidente norte-americano George W. Bush após os atentados de 11 de setembro de 2001, por exemplo, ia contra uma série de direitos civis.

Há dúvidas consideráveis a respeito de os atuais regimes da Venezuela e do Irã poderem ser considerados democracias. A historiadora indiana Thapar Romila, professora emérita da Universidade Jawaharlal Nehru, de Nova Délhi, analisa a seguir os vários aspectos que cercam a ideia de democracia.

Nas cidades gregas, os escravos eram a maioria.

O ideal democrático nunca foi totalmente traduzido na prática. Muitas das chamadas sociedades democráticas do passado foram sequestradas e tornaram-se oligarquias em que a retórica democrática era usada para preservar a ficção de que o grupo dominante representava a maioria.

As cidades-estado gregas, por exemplo, são frequentemente citadas como as primeiras democracias, mas é convenientemente esquecido que, nelas, o número de cidadãos livres era superado pelo de escravos e estes não eram representados nem tinham qualquer direito. À luz da experiência histórica, como a democracia pode ser adaptada às circunstâncias atuais?

Nos tempos modernos, a democracia tem sido frequentemente associada ao Estadonação. Mas talvez não devêssemos esquecer a experiência das unidades políticas e sociais menores que, no passado, foram governadas adotando programas semidemocráticos.

Aqueles que buscaram dotar o Estado-nação de uma identidade, associando-o à classe média ou a um grupo regional, linguístico, étnico ou mesmo religioso, afirmaram estar fazendo isso em nome da democracia. Às vezes, tem-se argumentado, essas comunidades eram fictícias e sua identidade ostensiva camuflava aspirações ocultas.

Ao equiparar-se a identidade do grupo ao nacionalismo, as causas democráticas e nacionais se uniram. Mas, nesses Estados-nações, o funcionamento da democracia era limitado pelo nacionalismo ao qual estavam ligados. Agora que o Estado-nação está sendo cada vez mais questionado, devemos também questionar a democracia - ou certos tipos de democracia?

Uma questão que poderia ser feita é se a democracia pressupõe o secularismo. Em muitas partes do mundo, a religião está sendo manipulada politicamente numa escala sem precedentes. Ao dizer isto, não estou contestando o direito de as pessoas praticarem sua fé, mas a maneira como vários políticos e fundamentalistas distorceram esse direito. Se questionar a função pública da religião leva necessariamente ao secularismo, então isso poderia incentivar a promoção de outra abordagem para a democracia, especialmente em sociedades nas quais várias religiões existem lado a lado.

As minorias já sabem que não podem ser excluídas

A democracia implica representação e decisões baseadas nas opiniões da maioria. Mas o que constitui uma maioria? Se é simplesmente uma questão de número de votos nas eleições, isso abre caminho para fraudes eleitorais ou para a mobilização de apoio da massa por ideologias que parecem abraçar uma variedade de causas, mas que, na realidade, não são mais do que um mecanismo para atrair e controlar um grande número de pessoas.

Penso aqui sobre o tipo de populismo reacionário baseado em raça ou religião que repetidamente causou tensões e violência em muitas partes do mundo. Nos interesses de uma verdadeira democracia, valeria a pena considerar como tais movimentos podem ser impedidos de impor sua definição de governo da maioria, especialmente quando as comunidades religiosas são exploradas politicamente, como parte de uma agenda supranacional oculta.

O moderno Estado-nação também enfrenta o problema de acomodar as culturas minoritárias, as quais estão cada vez mais conscientes de que não podem ser excluídas da maioria democrática. Esse problema poderá se tornar especialmente agudo nos países industrializados, onde grupos nitidamente diferentes têm sido reunidos à força por meio de conexões coloniais passadas e necessidades econômicas presentes, e onde uma maioria numérica é, por vezes, reduzida à condição de uma minoria política. Nas ex-colônias, onde tais conflitos também são conhecidos, os grupos divergentes pelo menos compartilham normalmente alguma herança e história comuns.

A melhor maneira de entender a correlação entre cultura e democracia é examinar a maneira pela qual os indivíduos ou grupos escolhem sua identidade e percebem a diferença entre eles e os outros. Em parte, esse é o resultado da socialização precoce. Também pode nascer de tensões e conflitos, que aguçam a percepção das pessoas sobre sua identidade.

Por que, aliás, o Estado-nação deve insistir em uma única identidade? Afinal, as pessoas têm identidades múltiplas. A esterilidade de uma identidade única poderia ser substituída por uma multifacetada, envolvendo padrões sociais e culturais mais complexos. A democracia multifacetada também seria mais difícil de controlar politicamente.

A democracia representativa muitas vezes acaba com o poder removido e distante do cidadão. Agora que o cinema, a televisão e a publicidade entraram todos em ação, os supostos representantes do povo se veem dirigindo-se a audiências que não podem sequer ver.

A verdadeira representatividade deve ser baseada em alguma referência lastreada nos eleitores, que também devem manter o direito de cassar seus representantes, se assim o desejarem. Esses direitos aparentemente negativos podem fornecer um corretivo essencial para a tendência de os representantes se transformarem em personalidades influentes.

O mercado livre tem suas qualidades, mas pode também prestarse a outros tipos de demandas ditatoriais, como a do consumismo.

O colapso de algumas economias socialistas levou os povos desses países a uma esperança desesperada de que o mercado livre iria protegêlos do ressurgimento de regimes totalitários. Mas a experiência de outros países mostra que o mercado não pode fazer isso. Infelizmente, ele pode prestar-se igualmente bem a outros tipos de demandas ditatoriais - do consumismo, da indústria de armamentos, das corporações multinacionais e de outros interesses.

Tais demandas, que corroem a igualdade de oportunidades e a justiça social, só podem ser combatidas por um sistema econômico justo e um sistema jurídico que seja acessível a todos os cidadãos e impeça a erosão dos direitos humanos e a anulação da dignidade humana.

No entanto, qualquer sistema pode ser prejudicado, maltratado ou anulado se aqueles que o controlam não puder em ser contestados. Instituições que supostamente agiriam como vigilantes muitas vezes acabam por favorecer os abusos que deveriam evitar.

A articulação da discordância e do protesto é imperativa para os sistemas democráticos. Mesmo nas sociedades democráticas, quando se ensinam às crianças seus direitos e deveres, raramente se dá atenção a seu direito de discordar. A conformidade é um prêmio, e a discordância é desaprovada ou ignorada. O sujeito submisso, em vez do indivíduo autônomo, é considerado o cidadão ideal.

Em defesa do caso do indivíduo autônomo, não estou defendendo uma sociedade anárquica. Indivíduos autônomos não se estabelecem para destruir a sociedade; eles estão preocupados em mudá-la por meio de maneiras criativas. Eles não necessariamente fazem parte da estrutura do poder em si, mas comentam sobre isso e, se for necessário, protestam contra ações específicas tomadas pelos detentores do poder. Enquanto se aceitar que há espaço para a autoridade moral, bem como a autoridade política e social na gestão da sociedade, essas pessoas sempre terão um lugar no processo democrático.



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